Não me engano, digo bem.
Ou talvez nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.
Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um.
Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas das existências.
A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de mim?
Explico: os moribundos tudo são permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles antecipam, pré-falecidos. O moribundo insulta-nos? Perdoamos, com certeza. Cagam nos lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais nada. Arranja lá uma maneira, senhor doutor. Desenrasca lá uma maneira de eu ficar moribundo, submorto.
Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo. Devido, talvez, o cansaço do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal eu? O lugar da minha vida não é esse tempo?
Deixo os pensamentos, vou directo na história. Começo no meu cunhado Bartolomeu. Aquela noite que ele me veio procurar, foi onde iniciaram desgraças.
[Mia Couto, “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?” (excerto), in 'Vozes Anoitecidas']
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