sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Palavras

Ilustr.: Jessica Dunegan




As palavras são tudo o que resta a que me agarrar. Tudo está parado, fragmentado.
Já não distingo os sonhos acordados e os sonhos a dormir da realidade.

[A Vida de Pi, 2012]

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Herança

Ilustr.: Nicoletta Tomas Caravia





Cada um de nós traz no fundo de si um pequeno cemitério daqueles que amou.

[Romain Rolland]

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Mansidão

Ilustr.: Elena Ellis





As águas correm mansamente onde o leito é mais profundo.

[William Shakespeare]

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Sem amor

Ilustr.: Kandinsky
A inteligência sem amor, te faz perverso.
A justiça sem amor, te faz implacável.
A diplomacia sem amor, te faz hipócrita.
O êxito sem amor, te faz arrogante.
A riqueza sem amor, te faz avaro.
A docilidade sem amor, te faz servil.
A pobreza sem amor, te faz orgulhoso.
A beleza sem amor, te faz fútil.
A autoridade sem amor, te faz tirano.
O trabalho sem amor, te faz escravo.
A simplicidade sem amor, te deprecia.
A oração sem amor, te faz introvertido e sem propósito.
A lei sem amor, te escraviza.
A política sem amor, te deixa egoísta.
A fé sem amor, te deixa fanático.
A cruz sem amor se converte em tortura.
A vida sem amor... não tem sentido!

[Lao Tsé]


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Sentido da Vida

Ilustr.: Valeria Docampo

Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar.
Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.

[Cora Coralina]

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Dentro de um abraço

Ilustr.: Nikolai Reznichenko
Que lugar melhor para uma criança, para um idoso, para uma mulher apaixonada, para um adolescente com medo, para um doente, para alguém solitário? Dentro de um abraço é sempre quente, é sempre seguro. Dentro de um abraço não se ouve o tic-tac dos relógios. Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve.

Que lugar melhor para um recém-nascido, para um recém-chegado, para um recém-demitido, para um recém-contratado? Dentro de um abraço nenhuma situação é incerta, o futuro não amedronta, estacionamos confortavelmente em meio ao paraíso.

O rosto contra o peito de quem te abraça, as batidas do coração dele e as suas, o silêncio que sempre se faz durante esse envolvimento físico: nada há para se reivindicar ou agradecer, dentro de um abraço voz nenhuma se faz necessária, está tudo dito.

[Martha Medeiros]

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Distância



Ilustr.: Ronald Companoca
Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.

Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d'antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.

Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d'esta sala...
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!

Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois...
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.

Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!

Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!...
Paira nas velhas ruínas do convento

Que além se avista,
A alma melancólica d'um monge
Que a vida arremessou àquela crista...

Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!...

[Fernanda de Castro, in "Antemanhã"]

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Afinidade

Ilustr.: Silvia Crocicchi
Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido.
Ter afinidade é muito raro. Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.
Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam. É ficar conversando sem trocar palavras. É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento. É não ter necessidade de explicar o que está sentindo. É olhar e perceber. É mais calar do que falar.
Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado.

[Arthur da Távola]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A partida


Ilustr.: Claudia Tremblay
Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.

Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.

Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.

Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É a mãe de uma filha minha.

Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.

Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.

Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar

Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.

[Vinicius de Moraes]

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Razão

Ilustr.: Salvador Dali



Concordei e cedi,
como concordo e cedo sempre que me falam com argumentos.
Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão,
seja quem for o seu procurador.

[Fernando Pessoa]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…

É preciso que a tua ausência trescale
subtilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…

Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.

[Mário Quintana]

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Súplica

Ilustr.: Nicoletta Tomas Caravia
Quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace.
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste.
Quando eu estiver fogo
Simplesmente se encaixe.
E quando eu estiver bobo
Subtilmente disfarce.
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate dentro de si...

[Nando Reis]

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os Dois Horizontes

Ilustr.: Viviana González
Dois horizontes fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.

[Machado de Assis]

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Triste ironia

Ilustr.: Maria Amaral



Aquele abraço era o lado bom da vida,
mas para valorizá-lo eu precisava viver.
E, que irónico:
para viver eu precisava perdê-lo...

[Tati Bernardi]

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Não basta ser namorado



Era uma vez um homem que tinha uma floricultura e alguém que vivia por entre flores, só podia entender muito de amor. Bem, mas vamos à história:

Era dia dos namorados, um rapaz entrou correndo em sua loja e disse-lhe:
- Por favor, senhor,  providencie-me um bouquet de flores.
- E que tipo de flores você quer?
- Qualquer tipo, só quero que seja algo que faça vista, pode ser o mais caro que o senhor tiver aí.
- Está certo, então tome o cartãozinho para você escrever.
- Não tem necessidade, é para minha namorada e como hoje é o dia dos namorados ela saberá que é meu.
- Você é que sabe, mas no seu lugar, eu escreveria.
- Não posso, estou com muita pressa, vou levar meu o carro para lavar.
Depois que o rapaz se foi, o senhor ficou ali a pensar como alguém poderia enviar flores sem as escolher, sem escrever um cartão com uma bonita dedicatória... mas enfim preparou um bonito bouquet e mandou para o tal endereço pensando... coitada dessa moça!

Algumas horas depois um outro rapaz entrou na sua loja.
- Senhor, por favor, eu quero mandar uma flor para alguém e é alguém muito especial e não tenho dinheiro suficiente para um bouquet requintado, sendo assim terá que ser somente uma rosa, mas faço questão que seja a mais linda que exista em sua floricultura.
- Pois bem, você quer escolhê-la ou prefere que eu escolha?
- Gostaria de escolher, mas aceito a sua sugestão porque tenho certeza que o senhor entende bem disso.
- Será um prazer! É sua namorada, não?
- Não senhor, ainda não, mas isso não é importante, o importante é que eu a amo e acho que hoje é um bom dia para dizer isso a ela.
- Muito bem, concordo com você.
- Talvez eu devesse escolher um botão de rosa, não acha? Afinal, nosso amor ainda não floresceu.
- Muito bem pensado!
Naquele instante o senhor percebeu que o rapaz, como ele, entendia de amor e com certeza estava vivendo um doce amor.
- Por favor, faça o mais bonito invólucro que o senhor puder fazer enquanto escrevo o cartão.
"Meu amor, estou lhe mandando esse botão de rosa juntamente com meu carinho. A mim não importa que você não me ame, porque apesar do meu amor ser solitário ele é verdadeiro e sendo verdadeiro, confio que um dia poderá viver acompanhado do seu. Não tenho pressa, amor de verdade não tem pressa,
amor de verdade não escraviza, nem exige, apenas se importa em doar. Um feliz dia dos namorados ao lado de quem você amar. Um beijo!"
Depois que escreveu o cartão o rapaz entregou ao senhor e disse-lhe:
- Leia por favor e me dê a sua opinião.
- Perfeito, gostei muito, só faltou um pequeno detalhe, você esqueceu de assiná-lo.
- Não esqueci não, é que não é importante por enquanto que ela saiba quem sou eu, nesse momento eu só pretendo que ela sinta quem sou eu.
O senhor sorriu e disse-lhe:
- Muito bem meu filho, torço por você!

Passaram-se os dias, os meses e um novo dia dos namorados chegou e novamente o primeiro rapaz voltou a loja.
- Bom dia senhor, lembra-se de mim?
- Lembro sim, e então, como vai o namoro?
- Xii... o senhor nem imagina, depois daquele Dia dos Namorados do ano passado ela terminou comigo e eu nunca entendi a razão, agora já estou namorando outra.
- Mas ela não lhe deu nenhuma explicação?
- Ah deu sim, uma explicação que eu não entendi. Ela me disse que eu a estava perdendo por causa de um botão de rosa. O senhor entende, não é? Bobagens de mulher.
- Entendo sim, quem não entendeu, foi você!

Não adianta um casal apenas sorrir juntos, eles precisam é sorrir pelas mesmas coisas. Não serve apenas caminharem juntos, tem que ser na mesma direção. Não adianta somente mandar flores, é crucial que elas cheguem ao seu destino com o perfume. Não vale se fazer presente apenas de corpo, é de suma importância que a alma e o coração estejam  presentes também.

Em resumo:
Não basta ser namorado. É preciso estar enamorado!

[Jorge Lordello]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Eu amo tudo o que foi

Ilustr.: Chanelle Kotze


Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errónea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

[Fernando Pessoa]

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

365 dias

Foto: Cláudio Paulino (11/12/2012)
Entre as pedras da calçada,
fresca, arejada mas sombria,
jazem momentos sem palavra
que sobejam do viver do dia.

A cada passo, e sem pegada,
ressoam silêncios do sentir.
Grito de vivência sonegada,
Ecos que desejo compartir.

Trezentos e sessenta e cinco
são os dias do caminho ido
Sublinho a data, faço o vinco,
Sigo, firme, comprometido.

[Luís Gonzaga, 12/02/2014]

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Tacto

Ilustr.: Ivan Cruz


Quer jogar?
Que rolem os tactos!

[Dan Cezar]

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Se puder ser...

Ilustr.: Sani Sue



Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

[Álvaro de Campos]

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Retiro na Alma

Ilustr.: Anatoly Dverin
Há quem procure lugares de retiro no campo, na praia, na montanha;
e acontece-te também desejar estas coisas em grau subido.
Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos.
Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de arruídos, que na alma, sobretudo quando se tem dentro dela aqueles bens sobre que basta inclinar-se para que logo se recobre toda a liberdade de espírito, e por liberdade de espírito, outra coisa não quero dizer que o estado de uma alma bem ordenada.
Assegura-te constantemente um tal retiro e renova-te nele.
Nele encontrarás essas máximas concisas e essenciais;
uma vez encontradas dissolverão o tédio e logo te hão-de restituir curado de irritações ao ambiente a que regressas.

[Marco Aurélio, Imperador Romano, in "Pensamentos"]

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Bem sei...

Ilustr.: Amy Elizabett
Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus danos às escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?

[Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"]


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Mudança de Idade

Ilustr.: Ricardo Celma
Para explicar os excessos do meu irmão, a minha mãe dizia: está na mudança de idade.
Na altura, eu não tinha idade nenhuma e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas no rosto do meu irmão, eu morria de inveja enquanto me perguntava: em que idade a idade muda?
Que vida, escondida de mim, vivia ele? Em que adiantada estação o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa, eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques mas vinham de longe, de onde já não chega o luar. Antes de dormirmos a mãe vinha esticar os lençóis que era um modo de beijar o nosso sono. Meu anjo, não durmas triste, pedia. E eu não sabia se era comigo que ela falava. A tristeza, dizia, é uma doença envergonhada. Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras soavam mais longe que os tambores nocturnos. O que invejas, falava a mãe, não é a idade. É a vida para além do sonho. Idades mudaram-me, calaram-se tambores, na lua se anichou a materna voz. E eu já nada reclamo.
Agora sei: apenas o amor nos rouba o tempo. E ainda hoje estico os lençóis antes de adormecer.

[Mia Couto]

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Tédio

Ilustr.: Ronald Companoca

Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer.
Essa moléstia da alma é porém mais subtil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.
Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida.
O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia.
O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.
Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir.

[Fernando Pessoa]

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Necessário

Ilustr.: Jeff Faust



Seja qual for o relacionamento que você atraiu para dentro de sua vida,
numa determinada época,
ele foi aquilo de que você precisava naquele momento.

[Deepak Chopra]

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Ventre

Ilustr. from Ironland




Quando os seus ventres se arredondam,
uma porção de céu fica acrescentada.

[Mia Couto, in 'A Confissão da leoa']

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Adversidade

Ilustr.: Lauri Blank




A adversidade restitui aos homens todas as virtudes que a prosperidade lhes tira.

[Eugène Delacroix]

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Intervalo

Ilustr.: Lena Sotskova
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?


Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca —
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

[Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"]

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Branco ou preto

Ilustr.: Nicoletta Tomas Caravia
Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja.
Não me apetece viver histórias medíocres, paixões não correspondidas e pessoas água com açúcar. Não sei brincar e ser café com leite. Só quero na minha vida gente que transpire adrenalina de alguma forma, que tenha coragem suficiente para me dizer o que sente antes, durante e depois ou que invente boas histórias caso não possa vivê-las. Porque eu acho sempre muitas coisas - porque tenho uma mente fértil e delirante - e porque posso achar errado - e ter que me desculpar - e detesto pedir desculpas embora o faça sem dificuldade se me provarem que eu estraguei tudo achando o que não devia.
Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada. Não me importa o que é de verdade ou o que é mentira, mas tem que me convencer, extrair o máximo do meu prazer e me fazer crer que é para sempre quando eu digo convicto que "nada é para sempre.

[Gabriel García Márquez]