É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?!
Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais.
Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua.
Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam.
S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado:
Sic non potuisti una hora vigilare mecum?
Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu.
O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores?
Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe?
Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
[Pe. António Vieira, in 'Sermão de Santo António aos Peixes']
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