sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Dói (1)

Ilustr.: Ronald Companoca
Eu sei que dói.
Há momentos em que a alma é demasiadamente grande para caber no nosso corpo e o mundo parece pequeno demais.
É então que nos vem uma ânsia de voar, de sonhar que bastaria abrir a janela, abrir os abraços e levantar voo para longe de tudo e de todos.
Nascer de novo e ser diferente e ser igual e sonhar como da primeira vez, saborear a paixão como da primeira vez, sentir o medo na boca do estômago pela primeira vez e pela primeira vez transformá-lo em nada mais que uma formiga espalmada no chão.
Eu sei que dói.
Que muitas e muitas vezes gostaríamos de acordar exactamente igual a todos. Aqueles que nos rodeiam e levam a vida como é suposto, sem almejar por castelos para conquistar nem aventuras maravilhosas à porta de casa.
Os dias nunca são iguais. Às vezes a dor no peito é que é igual e precisamos rapidamente de sentir o ar no rosto, sentir o cheiro da chuva e abrir a porta e sair sem destino.
Temos longas batalhas dentro de nós. O cérebro que nunca consegue pensar numa só coisa, o corpo que não se satisfaz enquanto não esgotamos toda e qualquer energia, para fazer nascer outra e outra.
Temos medos que os outros não conhecem porque nunca acreditaram em dragões, nem cavalos alados, nem em céus vermelhos de sangue com nuvens de todas as cores do arco-íris.
Eu sei que dói.
Dói de cada vez que nos apaixonamos por um projecto, por um sonho impossível, por um objectivo, por alguém e depois, muito antes de toda a gente, já o imaginámos, já o concretizámos e de repente o que era urgente e fundamental e o mais importante do mundo torna-se assunto resolvido, passado, algo sem interesse.
Claro que os outros têm tudo o resto. O sossego do corpo, da alma e do coração, dos músculos e sonos profundos sem pesadelos e passeios perdidos entre labirintos.
Claro que os outros têm tantas coisas e contudo parecem-nos de um vazio total.
É tão difícil encontrar alguém que tenha interesse por mais de meia hora, que tenha conversa ou ideias ou apenas loucuras de visionário.
Se tivéssemos nascido há séculos atrás, partiríamos a explorar o Pólo Norte, o deserto mais longínquo onde, temos a certeza absoluta, iríamos encontrar o Principezinho com a sua rosa.
Agora, que acabaram as caravelas, as cruzadas e os moinhos de vento, cabe-nos inventar tudo de novo, com outros nomes e outras formas mas sabendo nós que tudo já foi inventado, todos os grandes livros já foram escritos, os grandes filmes realizados e só nos resta fingir que todos os dias partimos montados em cavalos alados, galgando as colinas de Lisboa e aterrando em planetas sem nome ou apenas no outro lado da rua, tanto faz.
Eu sei que dói porque nunca nada é tão grande, nem tão forte, nem tão duradouro quanto sonhámos.
Apenas o medo. Apenas a tristeza de sermos estrangeiros onde quer que estejamos, seja com quem for que estejamos.
É tudo uma questão de tempo até o tempo nos pesar demais, até qualquer pessoa, seja ela quem for, se tornar pesada demais para ocupar o ar que respiramos.
Vivemos meio-dia em pleno Verão, beijados por um sol que nos aquece o sangue e nos dá uma força de vida inacreditável para os outros, e de repente sem aviso, sem nada, a luz desaparece e fica noite sem luar, e a tristeza instala-se até nos fazer doer os ossos, e as lágrimas não são lágrimas mas farpas que atiramos a alguém, seja quem for.
Contudo, nós amamos total e incondicionalmente.
Durante o tempo que dura e que não sabemos medir e explicar, amamos e queremos fazer rir a quem amamos, quereremos dar-lhe o mundo numa caixa de chocolates e numa mão cheia de estrelas.
No dia em que acordamos e descobrimos que já partimos e não sabíamos, que apenas o nosso corpo, qual carcaça sem préstimo para ali está, nesse dia e uma vez mais, o lado negro da noite sem luar toma conta de nós e mais nada há a fazer.
Eu sei que dói.
[...]

[Luísa Castel-Branco]

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