domingo, 4 de janeiro de 2015

Dói (2)

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Ilustr.: Katie m. Berggren
Eu sei que dói.
Porque a vida parece começar depressa mas não é verdade. Quando damos por nós e somos adultos, aí sim, os dias deixam de ter vinte e quatro horas e falta-nos fazer tanto, não sabemos o quê, nem onde, mas sabemos que há uma porta à nossa espera, uma fresta escondida por onde vamos fugir para sempre, nem que seja só até amanhã.
Eu sei que dói mas é assim e não vale a pena tentar que seja diferente.
Digo-te eu que tentei ser a menina exemplar, a mulher exemplar e um dia abri os braços e voei, mesmo que ninguém tenha sabido, aterrei com o corpo no chão e nunca fiz mais nada até hoje senão levantar-me e tornar a cair e tornar a levantar-me.
A vida é um mistério tão maravilhoso que a maior parte das vezes nos confunde, nos embriaga ou nos deixa de rastos, não sei explicar porquê, mas é assim.
Eu sei que dói mas os outros têm outras dores.
Os outros, todos os outros com quem fazemos um esforço para lidar, para criar laços, para estabelecer pontes e contudo estamos sempre sozinhos, nós e a nossa cabeça que não pára de sonhar, de rodar e rodopiar.
Como dizia Pessoa, o melhor do mundo são as crianças.
E a criança que há em nós não cresce nunca, não deixa nunca de ser o menino com medo do escuro e vontade de espreitar o que está para lá do muro.
Mas é essa eterna criança que nos levará ao colo a vida toda e nos permitirá fazer grandes coisas.
Grandes feitos, grandes sofrimentos, grandes desilusões, grandes culpas.
Eu sei que dói mas acredita, não querias ser como todos os outros porque tudo o que ainda vais viver é incomensuravelmente maior do que eles podem sequer imaginar.
Nunca mintas. Nunca deixes de sonhar e nunca te esqueças que a única coisa verdadeira nesta vida, neste planeta, neste momento exacto da história do universo é a carne da tua carne.
Tudo o resto é passageiro, quimeras e fumos de queimadas de Verão.
A razão de termos vindo aqui é essa. A de olhar para um ser que concebemos e perceber a dimensão desse amor.
Eu sei que vai doer a vida inteira. Porque o amor verdadeiro é este e por isso é como uma parte do nosso corpo que nos é retirada e vive fora de nós.
Somos livres de tudo e para sempre, exceptuando deste amor infinito!

[Luísa Castel-Branco]

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