Ilustr.: Ryan Bongers |
Quando andava na escola primária, tinha um colega que respondia às perguntas que não percebia da professora com um “hã?” cheio de arrasto. A professora explicou-lhe — para lá de uma mão de vezes — que não se diz “hã?” mas sim “como disse?”. Ele não só deixou de dizer “hã?” rapidamente como não tenho dúvidas que aquela mão de vezes lhe persegue as respostas que dá até aos dias de hoje.
Fui à escola primária e vim porque cada vez mais acho que as pessoas se revelam na maneira como se posicionam no mundo. Naquilo que dizem, sobretudo naquilo que não dizem, e na forma como dizem. A razão porque cada vez gosto mais dos cães é porque abriram a porta ao vírus da sinceridade desvairada.
Este vírus é uma epidemia e atinge a minha geração e todas as pessoas que vivem na nova forma de estar versão “reality show”, assente na delicadeza com que se tratam todos os participantes destes aquários de boçalidade humana. Regem-se pela bíblia da frontalidade grosseira, levada ao colo nestes termos: “Eu sou uma pessoa sincera. Digo o que penso”.
O problema é que esta falta de filtros, que resvala para aquela digníssima má educação, parece que se tornou — aos olhos dos outros — numa capacidade de afirmação de se lhe tirar o chapéu. Reina pela falta de sensibilidade, descamba até um volume de decibéis sem descrição e prima por um rodar de cabeça que se pavoneia sobranceiro sobre todo e qualquer um que estiver a ouvir.
Depois, e porque a frontalidade sem recuo não escolhe classes, ainda há a turma dos que tentam ser polidos mas rematam com um “vais-me desculpar, mas tenho que te dizer: isso é horrível”. E, assim, a frontalidade vira costas, quando nunca lhe foi pedida qualquer opinião, de cabeça perfeitamente tranquila com aquilo que os princípios da sinceridade lhe dizem. Nós, que coramos de vergonha alheia perante a desfaçatez de quem diz, ficamos incapazes de retorquir aquilo que os filtros nunca nos vão deixar sair “se soubesses como ficas a comer de boca aberta estavas caladinho/a”.
E, assim, nós, quais aparentes cobardes das opiniões saltitonas sobre todo e qualquer assunto, vamos gerindo os dias, calados, na fila do supermercado, a assistir a telefonemas de quem espera à nossa frente: “Ouve lá, se estás aí fora, esperas, que eu também esperei por ti para sair de casa”. Telefonemas que terminam a seco, que se desligam sem antes haver um adeus. O “esperas” enternece-me. As pessoas agora não perguntam, ordenam: “Estás aí fora? Esperas”. Não vá quem espera pensar em não esperar, a ordem está dada e não aceita recuo, pelo menos perante aquele desligar que se impõe sem adeus.
Assim, vamos gerindo os dias, mudos, ao balcão dos cafés, quando nos cai no colo o simpático “queria ou quer um galão?”. Aquela menina nunca vai perceber que aquele pretérito imperfeito é tudo menos falta de vontade de lhe virar o galão em cima. É, sobretudo, um pretérito imperfeito de cortesia que só queria ser delicado. Já agora, se ainda não for demais, queria o galão, sim, se ainda quiser fazer o favor.
[Marta Couto, 26/11/2013, in Público]
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