Ilustr.: Albin Veselka |
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas— de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro vivera...
Quando emergimos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados cheios de tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizar-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima.. .
[Fernando Pessoa, in 'O Eu profundo e os outros Eus']
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