Ilustr.: Henri Fantin-Latour |
2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal — o que dá a emoção artística — essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa.
Temos, pois:
(1) A sensação, puramente tal.
(2) A consciência da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho estético.
(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.
3. Ora toda a sensação é complexa, isto é, toda a sensação é composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir. É composta dos seguintes elementos: a) a sensação do objecto sentido; b) a recordação de objectos análogos e outros que inevitável e espontaneamente se juntam a essa sensação; c) a vaga sensação do estado de alma em que tal sensação se sente; d) a sensação primitiva da personalidade da pessoa que sente. A mais simples das sensações inclui, sem que se sinta, estes elementos todos.
4. Mas, quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe. Porque — o que é uma sensação intelectualizada? Uma de três coisas:
a) uma sensação decomposta pela análise instintiva ou dirigida, nos seus elementos componentes;
b) uma sensação a que se acrescenta conscientemente qualquer outro elemento que nela, mesmo indistintamente, não existe;
c) uma sensação que de propósito se falseia para dela tirar um efeito definido, que nela não existe primitivamente.
São estas as três possibilidades da intelectualização da sensação.
[Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação']
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