segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Delicadeza

Ilustr.: Edgar Degas

Delicadeza é aquilo que nos alcança sem nos tocar.
É a melodia que nos embala mesmo em silêncio.
É quando a boca empresta um sorriso aos olhos sem que nenhuma cobrança seja feita e os sentidos se misturam sem que ninguém dispute o melhor espaço.

[Fernanda Gaona]

domingo, 29 de setembro de 2013

Interpretações

Ilustr.: Chanelle Kotze
Um mestre zen descansava com seu discípulo. A certa altura, tirou um melão do seu alforje, dividiu-o em dois, e ambos começaram a comê-lo.
No meio da refeição, o discípulo comentou:
— Meu sábio mestre, sei que tudo que o senhor faz tem um sentido. Dividir este melão comigo talvez seja um sinal de que tem algo a me ensinar.
O mestre continuou a comer em silêncio.
— Pelo seu silêncio, entendo a pergunta oculta – insistiu o discípulo. — E deve ser a seguinte: o gosto que estou experimentando ao comer esta deliciosa fruta está em que lugar: no melão ou na minha língua?
O mestre não disse nada. O discípulo, entusiasmado, prosseguiu:
— E como tudo na vida tem um sentido, eu penso que estou perto da resposta a esta pergunta: o gosto é um ato de amor e interdependência entre os dois, porque sem o melão não haveria um objeto de prazer, e sem a língua…
— Basta! – disse o mestre. — Os mais tolos são aqueles que se julgam os mais inteligentes, e buscam uma interpretação para tudo! O melão é gostoso, isto é suficiente, e deixe-me comê-lo em paz!

[Paulo Coelho]

sábado, 28 de setembro de 2013

A vida

Foto: Jon Gavin
Para os erros há perdão,
para os fracassos, chance,
para os amores impossíveis, tempo…
Não deixe que a saudade sufoque,
que a rotina acomode,
que o medo impeça de tentar.
Desconfie do destino e
acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planeando,
vivendo que esperando
Porque, embora quem quase morre esteja vivo,
quem quase vive já morreu.

[Luís Fernando Veríssimo]

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Teu Riso

Ilustr.: Milos Kodzoman
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.

[Pablo Neruda, in "Poemas de Amor"]

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Menina Mulher

Ilustr.: Ricardo Celma






Estou na caridade da evolução do meu ser. Quero ser menina, encontro-me mulher...
Quero ser mulher, vejo-me menina...

[Ferreira Gullar]

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Desfaço

Ilustr.: Salvador Dali



Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.

[Sophia de Mello Breyner Andresen, "Penélope", in Coral]

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Profundamente

Ilustr.: Chanelle Kotze





Ser profundamente amado por alguém dá-nos força;
amar alguém profundamente dá-nos coragem.

[Lao-Tsé]

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Não posso adiar o amor

Ilustr.: Gary Stutler

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

[António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa"]

domingo, 22 de setembro de 2013

Palavras interditas

Ilustr.: Orlando Quintero
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

[Eugénio de Andrade]

sábado, 21 de setembro de 2013

O nosso outono

Ilustr.: Chanelle Kotze




Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

[Ricardo Reis, in "Odes"]

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Brilho

Ilustr.: Meaghan Sands



Aprendi com as estrelas que
para brilhar não é necessário ofuscar ninguém. 

[Zelino Armando]

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A Difícil Escada do Mérito

Ilustr.: Salvador Dali

Que terrível trabalho tem um homem, sem padrinhos e sem cabala, sem estar escrito em nenhuma corporação, sendo sozinho e só tendo por recomendação um grande mérito, para fazer luz sobre a obscuridade em que se encontra, e chegar ao nível de um tolo bem cotado!

Quase ninguém percebe por si mesmo o mérito dos outros. Os homens estão demasiado ocupados consigo mesmos para ter tempo de compreender e discernir os outros: daí o facto de que com grande mérito e modéstia ainda maior poder-se ficar muito tempo ignorado.

O génio e os grandes talentos muitas vezes faltam, às vezes também faltam apenas as ocasiões: alguns podem ser louvados pelo que fizeram, outros pelo que teriam feito. É menos raro encontrar espírito, do que pessoas que se sirvam do seu, ou façam valer o dos outros e o utilizem em alguma coisa.

Há mais ferramentas do que operários, e entre estes, há mais maus que excelentes: que pensar de quem queira serrar com uma plaina e tome o serrote para aplainar?
Não há no mundo trabalho mais penoso que o de fazer nome ilustre: a vida acaba quando apenas se esboçou a obra.

[Jean de La Bruyére, in "Os Caracteres"]

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Há mulheres

Ilustr.: Luis Miguel Rodriguez
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes e calma.

[Sophia de Mello Breyner Andresen]

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Palavras ditas

Ilustr.: Ricardo Celma
sempre amei por palavras muito mais
do que devia

são um perigo
as palavras

quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada

e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos

um perigo
as palavras

mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

[Alice Vieira]

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Tempo

Ilustr.: Salvador Dali
A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

[Mário Quintana]

domingo, 15 de setembro de 2013

Adversidade

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez

A adversidade é como um vento forte.
Arranca de nós tudo, menos o que não nos pode ser tirado,
de maneira que nos vemos exatamente como somos.

[Arthur Golden]

sábado, 14 de setembro de 2013

Não digas nada!

Ilustr.: Lauri Blank
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade 
Há tanta suavidade em nada se dizer 
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver... 
Não digas nada 
Deixa esquecer 

Talvez que amanhã 
Em outra paisagem 
Digas que foi vã 
Toda essa viagem 
Até onde quis 
Ser quem me agrada... 
Mas ali fui feliz 
Não digas nada. 

[Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"]

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O que quer uma mulher

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez

Um bebé nasce.
O médico anuncia: é uma menina!
A mãe da criança, então, se põe a sonhar com o dia em que a sua princesinha terá um namorado de olhos verdes e casará com ele, vivendo feliz para sempre. A garotinha ainda nem mamou e já está condenada a dilacerar corações.
Laçarotes, babados, contos de fadas: toda mulher carrega a síndrome de Walt Disney.

[Martha Medeiros]

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Quero

Ilustr.: Lauri Blank
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amo amo amo amo amo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

[Carlos Drummond de Andrade]

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Encontro-me aqui

Ilustr.: Pièrre Houde




Vou e venho.
Perco-me por lá e
encontro-me aqui.

[Miguel Torga, in 'Diário XV']

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Ceguetas!

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez
O Amor é um Exagerador

As coisas boas, como o amor e a sabedoria, não trazem a felicidade pela simples razão que as coisas boas têm, para ser boas, de ser «boas por si mesmas». Não podem ser boas por aquilo que trazem. Pelo contrário, têm um preço. O mais das vezes, o preço do amor e da sabedoria, ambos artigos finos, artigos de luxo, coisas boas, é a infelicidade.

Quando se ama, ou quando se estuda muito, fica-se sujeito às vontades e às verdades mais alheias. Nada depende quase nada de nós. E sofre-se. Irritam-se as pessoas que esperam que o amor traga a felicidade. É como esperar que os morangos tragam as natas.

O amor não é um meio para atingir um fim — não é através do amor que se chega à felicidade. O amor é um exagerador — exagera os êxtases e as agonias, torna tudo o que não lhe diz respeito (o mundo inteiro) numa coisa pequenina. Assim como a arte tem de ser pela arte e a ciência pela ciência (seria um horror ouvir alguém dizer «Eu quero ser pintor ou biólogo para ganhar muito dinheiro e ir a muitas festas e ter duas carrinhas Volvo com galgos do Afeganistão lá dentro»), o amor tem de ser só pelo amor. Custe o que custar. Ora, o amor é uma coisa rara.

Para se ser feliz, é preciso ser-se um pouco cegueta. Entre as coisas que as pessoas miseráveis, normais, estão sempre a chamar às pessoas felizes, há: ingénua, lírica, naif, boazinha. Aquela de que gosto mais é «Vives noutro mundo!». Haverá coisa melhor que viver noutro mundo, para quem conheça minimamente este? Não acreditar que alguém nos queira fazer mal é um sinal seguro de felicidade. Quem é mesmo feliz é a pessoa que pensa «No fundo, até os meus inimigos gostam um bocadinho de mim...». É por isso que as pessoas felizes são sempre bastante convencidas.

[Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas']

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Mães e filhas

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez


Pais e filhos poupam-se entre eles
muito mais do que mães e filhas.

[Friedrich Nietzsche]

domingo, 8 de setembro de 2013

74º Aniversário

Ilustr.: Paul Knight

Foi uma grande perda.
Teria sido bom ter comunicado com o meu pai como um homem, não só como um miúdo.
Gostaria de ter tido isso.
Mas temos de encontrar isso em nós próprios.
Temos que ser os nossos próprios pais.

[Patrick Dempsey]

sábado, 7 de setembro de 2013

Coxos

Ilustr.: Agim Sulaj




As pessoas de quem gostámos e partiram
amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas,
e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro.

[António Lobo Antunes]

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Encontro de Almas

Ilustr.: Twin Flame Art



O discípulo pergunta:
– Mestre, o que é um encontro de almas?
– É quando você, ao conhecer alguém, diz:
muito prazer;
enquanto sua alma sussurra:
Que saudades!

[Miryan Lucy]

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Longe?

Ilustr.: HJ Story





Nós nunca estamos longe quando estamos no coração de alguém.

[Vanya Moreira]

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Capítulos

Ilustr.: Vladimir Kush

Vá fechando os capítulos que você já leu;
não há necessidade de ficar voltando.
E nunca julgue nada do passado pela nova perspectiva que está chegando,
porque o novo é o novo,
incomparavelmente novo, e o antigo foi certo
dentro de seu próprio contexto,
e os dois são incomparáveis."

[Osho]

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Expectativas

Ilustr.: Adrian Waggoner

Às vezes colocamos tantas expectativas em momentos de nossas vidas,
ou até mesmo em pessoas, ou situações que vivemos...
E quando o tempo passa e o que esperávamos não acontece,
geralmente o próximo passo chamar-se-á: frustração!!
O nosso maior ERRO!!

Às  vezes, colocamos expectativas demais em relação a nós mesmos,
e quando não conseguimos fazer exatamente o que gostaríamos,
vem a nossa própria "cobrança",
não existe nada pior que ser "cobrado" por nós mesmos!!

Nunca devemos colocar expectativas demais sobre as pessoas,
porque podemos estar esperando além do que elas poderiam nos oferecer
e talvez elas nem saibam que esperávamos tanto!!
E quando isso não acontece, fica um sentimento de "decepção"
de desapontamento, de tristeza, perde-se o encanto!!

Viva o momento, valorize o que recebe hoje,
e não fique imaginando que "poderia" ter sido melhor!!
A maior felicidade está no inesperado, no surpreendente!!

Tenha a convicção de que você pode proporcionar a SUA felicidade,
independentemente das outras pessoas,
não espere que isso seja feito por alguém...
Ou que a sua felicidade esteja condicionada a alguém!

A vida todos os dias nos apresenta momentos a serem vividos,
cabe a nós fazermos a nossa escolha...
Ser feliz, sem criar expectativas, é termos
a  possibilidade de superação, de encantamento...
Ou, então, criar expectativas demais e conviver com a frustração!!

Viva intensamente e deixe a vida fluir naturalmente,
você pode se surpreender com o que virá,
acredite!!

[Vanya Moreira]

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Confissão

Ilustr.: Salvador Dali
De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.

Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.

[Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"]

domingo, 1 de setembro de 2013

Setembro

Ilustr.: Wang Niandong
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
que bosque, ou rio, ou mar?
ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde os corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

[Eugénio de Andrade, in Coração do Dia (1958)]