quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Culpabilidade

Ilustr.: Beatriz Hidalgo De La Garza



O estado de pecado no homem não é um facto, senão apenas a interpretação de um facto, a saber: de um mal-estar fisiológico, considerado sob o ponto de vista moral e religioso. O sentir-se alguém «culpado» e «pecador», não prova que na realidade o esteja, como sentir-se alguém bem não prova que na realidade esteja bem.
Recordem-se os famosos processos de bruxaria; naquela época os juízes mais humanos acreditavam que havia culpabilidade; as bruxas também acreditavam; contudo, a culpabilidade não existia.

[Friedrich Nietzsche, in 'Genealogia da Moral']

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Casa arrumada

Ilustr.: Valeria Docampo

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz. Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida... Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança. Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto... Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos... Netos, pros vizinhos... E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Arrume a casa todos os dias... Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela... E reconhecer nela o seu lugar.

[Carlos Drummond de Andrade]

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Grandiosidade

Ilustr.: Chanelle Kotze
Abre caminho para a vida.
Solta tudo o que guardas para ti.
Desapega-te das tuas posses.
Tu não és as tuas posses.
És infinitamente mais!
Alegra-te com o que passa pelas tuas mãos.
Guardar não é prazer, pois é a ti mesmo que mantens prisioneiro. Tens livre arbítrio quando não possuis. Quando possuis, a dependência do que é material leva embora o teu livre arbítrio.
Enquanto te agarras às posses materiais, também te agarras ao ressentimento, insegurança e ansiedade.
Existe um paralelo aí. A cada coisa que soltas, tu ganhas a ti mesmo. E enfim soltarás inclusive a ti mesmo, o teu eu encolhido, o pequeno eu, e então ganharás a Grandiosidade que foste destinado a ser e que já és. Saberás realmente tudo o que és, logo que todo o entulho que pensaste que fosse um tesouro não mais te possuir.

[Gloria Wendroff]

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pedras no caminho

Ilustr.: Susan Batori

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
Mas não esqueço de que minha vida
É a maior empresa do mundo…
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
Apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
Se tornar um autor da própria história…
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
Um oásis no recôndito da sua alma…
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “Não”!!!
É ter segurança para receber uma crítica,
Mesmo que injusta…
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…

[Fernando Pessoa]

domingo, 27 de outubro de 2013

Aceita o Universo

Ilustr.: Mantra Om, in Mantra Yoga Samhitá


Aceita o universo
Como to deram os deuses. 
Se os deuses te quisessem dar outro 
Ter-to-iam dado.
Se há outras matérias e outros mundos 
Haja. 

[Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"]

sábado, 26 de outubro de 2013

Está tudo dito

Ilustr.: Lauri Blank


Dentro de um abraço nenhuma situação é incerta,
o futuro não amedronta,
estacionamos confortavelmente em meio ao paraíso.
O rosto contra o peito de quem te abraça,
as batidas do coração dele e as suas,
o silêncio que sempre se faz durante esse envolvimento físico:
nada há para se reivindicar ou agradecer,
dentro de um abraço voz nenhuma se faz necessária,
está tudo dito.

[Martha Medeiros]

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Há momentos

Ilustr.: Matteo Arfanotti






Há momentos em que as palavras perdem os sentidos e,
por mais que tentemos empregá-las,
elas parecem não servir.
Então a gente não fala,
simplesmente sente...

[Freud]

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Sumi

Ilustr.: Enrique Garcia Saucedo

Sumi porque só faço besteira em sua presença,
fico mudo quando deveria verbalizar,
digo um absurdo atrás do outro
quando melhor seria silenciar,
faço brincadeiras de mau gosto e sofro antes,
durante e depois de te encontrar.
Sumi porque não há futuro
e isso não é o mais difícil de lidar,
pior é não ter presente e o passado ser mais fluido que o ar.
Sumi porque não há o que se possa resgatar,
meu sumiço é covarde mas atento,
meio fajuto meio autêntico,
sumi porque sumir é um jogo de paciência,
ausentar-se é risco e sapiência,
pareço desinteressado,
mas sumi para estar para sempre do seu lado,
a saudade fará mais por nós dois que nosso amor
e sua desajeitada e irrefletida permanência.

[Martha Medeiros]

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Pacto

Ilustr.: Valeria Docampo
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

[Carlos Drummond de Andrade]

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Especial

Ilustr.: Cécile Vallée / Les toiles d'Az




Eu até acho que a realidade não existe:
existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou simplesmente imaginamos.
E é isso que torna a vida suportável.
Ou especial.

[Lya Luft]

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Faxina

Ilustr.: Salvador Dali

Estava precisando fazer uma faxina em mim…
Jogar fora alguns pensamentos indesejados,
Tirar o pó de uns sonhos,
lavar alguns desejos que estavam enferrujando…
Tirei do fundo das gavetas lembranças que não uso e não quero mais.
Joguei fora ilusões, papéis de presente que nunca usei, sorrisos que nunca darei…
Joguei fora a raiva e o rancor
Guardadas num livro que não li.
Peguei meus sorrisos futuros e alegrias pretendidas e as coloquei num cantinho, bem arrumadinhas.
Fiquei sem paciência! Tirei tudo de dentro do armário e fui jogando no chão:
paixões escondidas, desejos reprimidos, palavras horríveis que nunca
queria ter dito, mágoas de um amigo, lembranças de um dia triste…
Mas lá havia outras coisas… belas!!!
... aquela gargalhada no cinema, o primeiro beijo…..
o pôr do sol…. uma noite de amor
Encantada e me distraindo, fiquei olhando aquelas lembranças.

Sentei no chão,
Joguei direto no saco de lixo os restos de um amor que me magoou.
Peguei as palavras de raiva e de dor que estavam na prateleira de cima -
pois quase não as uso – e também joguei fora!
Outras coisas que ainda me magoam, coloquei num canto para depois ver o que fazer, se as esqueço ou se vão pro lixo.
Revirei aquela gaveta onde se guarda tudo de importante: amor, alegria, sorrisos, fé…
Como foi bom!!!
Recolhi com carinho o amor encontrado,
dobrei direitinho os desejos,
perfumei na esperança,
passei um paninho nas minhas metas e deixei-as à mostra.
Coloquei nas gavetas de baixo lembranças da infância;
em cima, as de minha juventude, e…
pendurada bem à minha frente,
coloquei a minha capacidade de amar… e de recomeçar… 

[Martha Medeiros]

domingo, 20 de outubro de 2013

Quanto vale um sim

Ilustr.: Aleksandra Ekster
Você consegue um bom emprego na hora que bem entender?
Você descola um amor do dia para a noite?
Se entrar num banco, sai de lá com um empréstimo sem burocracia?
Se você respondeu sim para todas estas perguntas, parabéns. E fique atento para o horário de partida do seu disco voador, pois a qualquer momento você terá que voltar para o seu planeta.

Entre nós, terrestres, o sim é uma resposta rara. Na maioria das vezes, não há vagas, não querem editar nossos poemas, não temos fiador, a garota não quer ouvir uns discos na sua casa, o garoto não quer usar camisinha e o guarda de trânsito não foi com sua cara e vai multá-lo, sim senhor. Não está fácil pra ninguém.

Ao contrário do que possa parecer, esta não é uma visão pessimista da vida. As coisas são assim, dão certo e dão errado.
Pessimismo é acreditar que ouvir um não seja uma barreira para realizar nossos planos.
Tem gente que fica paralisado diante de um não. Nunca mais vai à luta.
Já o otimista resmunga um pouco e em seguida respira fundo e segue em frente.

Quando eu tinha 17 anos, mandei uns versos para um concurso de poesia. Não ganhei nem menção honrosa. Daí entreguei meus versos para o Mário Quintana avaliar. Ele não respondeu.
Neste meio tempo eu estava apaixonada por um cara que ignorava a minha existência. Quando eu não estava pensando nele, fazia planos de morar sozinha, mas o meu estágio não era remunerado. Aí quis viajar para a Europa, mas não consegui entrar num programa de intercâmbio.
Surpreendentemente, não passou pela cabeça a ideia de me atirar embaixo de um caminhão.
Hoje tenho nove livros publicados (cinco deles de poesia), sou casada com o homem que amo, tenho a profissão dos sonhos e viajo uma vez por ano, e tudo isso sem ganhar na megasena, sem cirurgia plástica, sem pistolão ou pacto com o demónio.

O segredo: cada não que eu recebi na vida entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Não os colecionei. Não foram sobrevalorizados.
Esperei, sem pressa, a hora do sim. O não é tão frequente que chega a ser banal. O não é inútil, serve só para fragilizar nossa auto-estima. Já o sim é transformador.
O sim muda a sua vida. Sim, aceito casar com você. Sim, você foi selecionado. Sim, vamos patrocinar sua peça.
Quando não há o que detenha você, as coisas começam a acontecer, sim.

[Martha Medeiros]

sábado, 19 de outubro de 2013

O poço

Ilustr.: Chanelle Kotze

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.
Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?
Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.
Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.
Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.
Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

[Pablo Neruda]

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Se eu morrer

Ilustr.: Alberto Pancorbo


Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente.

[Pablo Neruda]

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Recordo ainda

Ilustr.: Wassily Kandinsky

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

[Mario Quintana - Velório sem defunto]

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Desejo de mudar

Ilustr.: Cécile Vallée / Les toiles d'Az




O desejo de mudar ocorre quando há insatisfação.
Há insatisfação quando você se afasta de sua essência.
Não deseje mudar quem você é, ao contrário,
tente retornar para quem você verdadeiramente é.

[Simone Mello]

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Tocante

Ilustr.: Ciro Palumbo



Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.

[Clarice Lispector]

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Geração à rasca

Ilustr.: Georgia Graham

Um dia, isto tinha de acontecer.
Existe uma geração à rasca?
Existe mais do que uma! Certamente!
Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo.
Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.

Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.

Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.

Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem  Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde  uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.

São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!

A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.

Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a  informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.

Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem  são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja!, que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!

Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la.
Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço?
Pode ser que tudo isto não passe de alarmismo, de um exagero meu, de uma generalização injusta.
Pode ser que nada/ninguém seja assim.

[Maria dos Anjos, www.assobiorebelde.blogspot.com, em 9 de Março]

domingo, 13 de outubro de 2013

Somos laço

Ilustr.: Chanelle Kotze


Não conheço mais caminhos, não procuro novos mapas, faço minha história no permanecimento.
Você é minha casa, meu terreno, minha pátria, meu lugar tranquilo, meu descanso, você é a bandeira sobre qual me estendo.
Nos confundimos nos nomes e sobrenomes, nas datas e nascimentos.
Não sei se eu termino, ou se você começa, ou então se é o avesso.
Somos laço. Nos perdemos em um abraço, já não sobra dúvidas sobre ocuparmos o mesmo lugar no espaço.
Hoje vamos inaugurar nosso amanhã.

[Cáh Morandi & Wendel Valadares]

sábado, 12 de outubro de 2013

Sete vezes

Ilustr.: Doris Barrette
Sete vezes desprezei a minha alma:
Quando a vi disfarçar-se com a humildade para alcançar a grandeza;
Quando a vi coxear na presença dos coxos;
Quando lhe deram a escolher entre o fácil e o difícil, e escolheu o fácil;
Quando cometeu um mal e se consolou com a ideia de que outros cometem o mal também;
Quando aceitou a humilhação por covardia e atribuiu sua paciência à fortaleza;
Quando desprezou a fealdade de uma face que não era, na realidade, senão uma de suas próprias máscaras;
Quando considerou uma virtude elogiar e glorificar.

[Khalil Gibran]

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Acanhamento

Ilustr.: Holly Sierra



Que eu saiba usar as minhas asas, ainda que com medo.
Que, ainda que com medo, eu avance.
Que eu não me encabule jamais por sentir ternura.

[Ana Jácomo]

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Bendito sejas

Ilustr.: Andrea Sovera Caffettieri

Bendito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!

Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dor,
Estremecendo, acorda...

A minha dor é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.

Canto e choro amargamente;
Mas a dor, indiferente,
Continua...

Então,
Febríl, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
- E a minha dor adormece,
E o leão é sossegado.

Quanto mais bebo mais dorme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!

E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!

Grande vida!

- Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!

[António Botto, in 'Canções']

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Milagres

Ilustr.: Ricardo Celma




Só há duas maneiras de viver a vida:
a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem.
A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre.

[Albert Einstein]

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A dor que dói mais

Ilustr.: Chanelle Kotze

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater com a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.

Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas.

Mas a saudade mais dorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o escritório e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua pintando o cabelo de vermelho. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango assado, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua surfando, se ela continua lhe amando.

Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.

Saudade é não querer saber se ele está com outra, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

[Martha Medeiros]

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sozinho

Ilustr.: Vasko Taskovski


Sozinho caminhando dentro de mim mesmo, eu encontro coisas que jamais poderia encontrar.
O amor, a paciência vem me fazer carinho, o meu caminho é dentro de mim.
Meus sonhos vivem e existem dentro da minha alma, hoje é o amanhã que tanto me preocupava ontem.

[Rhenan Carvalho]

domingo, 6 de outubro de 2013

Ambição

Ilustr.: Kenney Mencher

Nenhum homem que ambiciona o poder o faz apenas pelo seu povo.
Fá-lo para honrar compromissos e lealdades, fá-lo por desejo de vingança ou por necessidade de manter-se a si e aos seus a salvo. Mas fá-lo, acima de tudo, por si próprio, pelo seu projeto pessoal. Pela sua ambição...

[Diana de Cadaval, in " Mafalda de Saboia"]

sábado, 5 de outubro de 2013

Tempo ao tempo

Ilustr.: Holly Sierra
Chorar não resolve, falar pouco é uma virtude, aprender a se colocar em primeiro lugar não é egoísmo.
Para qualquer escolha segue-se alguma consequência, vontades efémeras não valem a pena, quem faz uma vez, não faz duas necessariamente, mas quem faz dez, com certeza faz onze. Perdoar é nobre, esquecer é quase impossível.
Quem te merece não te faz chorar, quem gosta cuida, o que está no passado tem motivos para não fazer parte do seu presente, não é preciso perder para aprender a dar valor, e os amigos ainda se contam nos dedos.
Aos poucos você percebe o que vale a pena, o que se deve guardar para o resto da vida, e o que nunca deveria ter entrado nela. Não tem como esconder a verdade, nem tem como enterrar o passado, o tempo sempre vai sendo o melhor remédio, mas os seus resultados nem sempre são imediatos.

[Charles Chaplin]

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Tudo ou nada

Ilustr.: Salvador Dali
Minha beleza está na minha essência e no meu carácter. Acredito em sonhos, não em utopia. Mas quando sonho, sonho alto. Estou aqui é pra viver, cair, aprender, levantar e seguir em frente. Sou isso hoje... Amanhã, já me reinventei. Reinvento-me sempre que a vida pede um pouco mais de mim.
Sou complexo, sou mistura, sou homem com cara de menino... E vice-versa.
Me perco, me procuro e me acho. E quando necessário, enlouqueço e deixo rolar... Não me doo pela metade, não sou teu meio amigo nem teu quase amor.
Ou sou tudo ou sou nada. Não suporto meio termos. Sou bobo, mas não sou burro. Ingénuo, mas não santo.
Sou pessoa de riso fácil...e choro também! Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania.
Depende de quando e como você me vê passar.

[Clarice Lispector]

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Se precisar de mim

Ilustr.: Chanelle Kotze
Toda vez que precisar de mim
grite meu nome ao vento
ele me trará o recado.

Quando precisar de mim
ouça uma música suave
de olhos fechados.

Sempre que precisar de mim
olhe a lua
e a luz abraçará você como eu faria.

Se precisar de mim
dance na chuva
água que correr em teu corpo
serão as lágrimas que choraria com você.

E se não houver
vento, música, lua ou chuva,
faça uma oração
e o meu anjo se unirá ao seu
para lhe dar colo e
conforto...
sempre que você precisar de mim.

[Felipe Azevedo]

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sal

Ilustr.: Matteo Arfanotti




Deve haver algo de estranhamente sagrado no sal
ele está nas nossas lágrimas e
na imensidão do mar...

[Khalil Gibran]


terça-feira, 1 de outubro de 2013

De dentro para fora

Ilustr.: Salvador Dali


Quem tenta ajudar uma borboleta a sair do casulo, mata-a. Quem tenta ajudar um rebento a sair da semente, destrói-o.
Há certas coisas que não podem ser ajudadas.
Têm que acontecer de dentro para fora.

[Rubem Alves]