terça-feira, 30 de setembro de 2014

Um anjo

Ilustr.: HJ Story



Um anjo vem todas as noites:
senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa,
como se fosse meu melhor amigo.
Esse anjo que chega e me abraça
(asas cobrindo a ferida do flanco)
é todo o amor que resta
entre ti e mim, e está comigo...

[Lya Luft]

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Regresso às Aulas

Ilustr.: Valeria Docampo
Lá se foram as férias, aventuras de verão?
Acabaram-se todas.
Num piscar de olhos o Carnaval já havia passado também.
E uma data geralmente esquecida, saltou diante de nossas faces: REGRESSO ÀS AULAS!
Obviamente, não se pode dizer, que esta pitoresca data é de tão 'mau agouro' assim, existem pessoas que até gostam de voltar à rotina escolar.
Poucas, é claro.

Mais um ano se inicia, e com ele as promessas também, separei umas clássicas, que eu mesmo pronuncio e escuto por aí:
- Este ano, prometo estudar.
- Nada de bagunças, estou amadurecido.
- Nada de festas, ano de vestibular (N.T.: ano de acesso ao Ensino Superior) é puro estudo, do começo ao fim.
- Neste trimestre, meu nome estará no mural de melhores notas.

Contudo, depois do 3° mês na rotina escolar, muitas dessas 'promessas' ficam pelo caminho, e como todo discurso político que se preze, a maioria das metas e barreiras a serem vencidas são simplesmente, apagadas, esquecidas.

Ao andar pela escola, três tipos de rostos são claramente identificados.
Novatos: Estudantes recentes, recém chegados. Tudo é motivo para 'bocas abertas, e gargalhadas.
Bagaços: Alunos já de casa, que possuem ainda alguma expectativa com relação a novidades, e muito animados com o NOVO ano.
Veteranos: Chegamos a um ponto crítico, são sempre os mais velhos, mais experientes, maduros, e legais é claro. Já viram de tudo um pouco, sabem todas as táticas para furar a fila na hora do recreio, roubar rebuçados na sala dos professores e tapiar a coordenadora.
3 grupos indiscritivelmente diferentes, e juntos, numa mesma entidade de ensino médio.
E que comecem as lutas, digo ... AULAS!

[Kayque Meneguelli]

domingo, 28 de setembro de 2014

Limites

Ilustr.: Valeria Docampo


Temos de pôr de parte tudo o que nos limita.
Quebrem as correntes dos seus pensamentos e quebrarão as correntes do corpo.

[Richard Bach]

sábado, 27 de setembro de 2014

Coerência

Ilustr.:  Laverne Ross


A minha preocupação não está
em ser coerente com as minhas afirmações anteriores sobre determinado problema,
mas em ser coerente com a verdade.

[Mahatma Ganghi]

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Metades de mim


Ilustr.: Georgy Kurasov
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

[Oswaldo Montenegro]

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Pesca

Ilustr.: Ciro Palumbo
Jogo a minha rede no mar da vida e às vezes, quando a recolho, descubro que ela retorna vazia.
Não há como não me entristecer e não há como desistir.
Deixo a lágrima correr, vinda das ondas que me renovam, por dentro, em silêncio: dor que não verte, envenena.
O coração respingado, arrumo, como posso, os meus sentimentos. Passo a limpo os meus sonhos. Ajeito, da melhor forma que sei, a força que me move.

Guardo a minha rede e deixo o dia dormir.

Com toda a tristeza pelas redes que voltam vazias, sou corajosa o bastante para não me acostumar com essa ideia. Se gente não fosse feita para ser feliz, Deus não teria caprichado tanto nos detalhes, intuo.
Perseverança não é somente acreditar na própria rede. Perseverança é não deixar de crer na capacidade de renovação das águas.

Hoje, o dia pode não ter sido bom, mas amanhã será outro mar. E eu estarei lá na beira da praia, de novo.

[Ana Cláudia Jácomo, in 'Perseverança']

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O simples e o difícil

Ilustr.: Katie m. Berggren




Só aqueles que têm paciência para
fazer coisas simples com perfeição
é que irão adquirir habilidade para
fazer coisas difíceis com facilidade.

[Friedrich Schiller]

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Silêncio dos olhos

Ilustr.: Mary Whyte





Dirão, em som, as coisas
que, calados, no silêncio dos olhos confessamos?

[José Saramago, in 'Os poemas possíveis' (1999)]

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Olhares



Ilustr.: Gerad Daran



Os homens têm muitos olhares.
Mas os homens tristes têm sempre nos olhos as neblinas de inverno que deixam as gaivotas em terra...

[João Morgado, in 'Diário dos Infiéis']

domingo, 21 de setembro de 2014

Brincava a criança

Ilustr.: Laurel Burch
Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!

Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu queria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
Está a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer.

[Fernando Pessoa]

sábado, 20 de setembro de 2014

Perder dói

Ilustr.: Chanelle Kotze




Perder dói!
Não adianta dizer 'não sofra', 'não chore'... dói...
só não podemos ficar parados no tempo chorando nossa dor diante das nossas perdas.

[Lya Luft]

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Desejo que desejes

Ilustr.: Salvador Dali

Desejo que desejes alguma mudança,
Uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma,
Mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia.
E desejo, principalmente,
Que desejes desejar, que te permitas desejar,
Pois o desejo é vigoroso e gratuito, o desejo é inocente,
Não reprima teus pedidos ocultos, desejo que desejes vitórias, romances, diagnósticos favoráveis,
mais dinheiro e sentimentos vários,
Mas desejo, antes de tudo, que desejes, simplesmente.

[Martha Medeiros]

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Nunca Serei Ninguém

Ilustr.: Ronald Companoca



Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

[Ricardo Reis, in 'Odes']

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Timidez

Ilustr.: Christian Schloe




A timidez,
inesgotável origem de tantas infelicidades na vida prática,
é a causa direta, mesmo única, de toda a riqueza interior.

[Emil Mihai Cioran]

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Completo, partiu

Ilustr.: Ciro Palumbo



Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida.
Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto...
Não olhava, pois, e, pois não ficava.
Completo, partiu.

[Caio Fernando Abreu]

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Esperança

Ilustr.: Gennady Privedentsev



Que a esperança agasalhe os nossos sonhos
para que nada envelheça o nosso sorriso.

[Marla de Queiroz]

domingo, 14 de setembro de 2014

Janelas

Ilustr.: Daniela Jandova



Nunca escrevi
sou apenas um tradutor de silêncios
a vida tatuou-me os olhos
janelas em que me escrevo e apago.

[Mia Couto]

sábado, 13 de setembro de 2014

O tamanho do universo

Ilustr.: Beatriz Hidalgo De La Garza
Um dia uma criança chegou diante de um pensador e perguntou-lhe: "Que tamanho tem o universo?". Acariciando a cabeça da criança, ele olhou para o infinito e respondeu: "O universo tem o tamanho do seu mundo". Perturbada, ela novamente indagou: "Que tamanho tem meu mundo?". O pensador respondeu: "Tem o tamanho dos seus sonhos".

Se seus sonhos são pequenos, sua visão será pequena, suas metas serão limitadas, seus alvos serão diminutos, sua estrada será estreita, sua capacidade de suportar as tormentas será frágil. Os sonhos regam a existência com sentido. Se seus sonhos são frágeis, sua comida não terá sabor, suas primaveras não terão flores, suas manhãs não terão orvalho, sua emoção não terá romances. A presença dos sonhos transforma os miseráveis em reis, faz dos idosos, jovens, e a ausência deles transforma milionários em mendigos faz dos jovens idosos. Os sonhos trazem saúde para a emoção, equipam o frágil para ser autor da sua história, fazem os tímidos terem golpes de ousadia e os derrotados serem construtores de oportunidades.
Sonhe!

[Augusto Cury]

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Medíocre

Ilustr.: Ronald Companoca





Ela perdeu tanto a fé em dias melhores que passou a se contentar com dias medíocres. Guardou sua loucura em alguma gaveta e nem lembra mais. 

[Martha Medeiros]

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cautela

Ilustr.: Glenn Quist



Não revele aos amigos os seus segredos,
porque você não sabe se algum se tornará seu inimigo.
Não cause ao seu inimigo todo o mal que lhe possa fazer,
porque você não sabe se ele se tornará um dia seu amigo.

[William Blake]

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O quociente e a incógnita

Ilustr.: Georgy Kurasov
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.

Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base...
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.

Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela.
Até que se encontraram
No Infinito.

"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode chamar-me Hipotenusa."

E de falarem descobriram que eram
O que, em aritmética, corresponde
A alma irmãs
Primos-entre-si.

E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz.
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Rectas, curvas, círculos e linhas sinusoidais.

Escandalizaram os ortodoxos
das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.

Romperam convenções newtonianas
e pitagóricas.
E, enfim, resolveram casar-se.
Constituir um lar.
Mais que um lar.
Uma Perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissectriz.
E fizeram planos, equações e
diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.

E casaram-se e tiveram
uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até àquele dia
Em que tudo, afinal,
se torna monotonia.

Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum...
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.

Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.

Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo.
Uma Unidade.
Era o Triângulo,
chamado amoroso.
E desse problema ela era a fracção
Mais ordinária.

Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade.
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como aliás, em qualquer
Sociedade.

[Millôr Fernandes]

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Enfermidades

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez


As enfermidades são os resultados
não só dos nossos atos
como também dos nossos pensamentos.

[Mahatma Ganghi]

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Não farei nada

Ilustr.: Alberto Pancorbo
-Ouviste bem? Sou tua. Estou aqui para provar que sou tua.
Lembras-te?
Chega a ser engraçado, agora pensar nisto. Agora que já aqui não estás, que não te tenho, e que, afinal, não me arranhaste, não puxaste os meus cabelos, não maldisseste o meu nome. Simplesmente foste embora; deixaste um bilhete e foste embora. Toma-me os lábios um sorriso triste quando me ocorre que eu te disse, assim que vieste espalhar beijos pelas minhas costas, que devia ser eu a dizer aquilo, que com certeza serias tu a primeira a ficar farta e a partir. E que tinha a certeza de que te deixaria ir, sem um gesto.
-Fico a chorar, mas não farei nada para te impedir, porque, para onde quer que vás, estarás indo para ser mais feliz.
-Não digas asneiras!
-É a sério.Eu não te mereço. E tu tens direito a alguém melhor do que eu, que te possa fazer feliz.

[Manuel Jorge Marmelo, in 'O Amor é para os parvos']

domingo, 7 de setembro de 2014

Contraditório

Ilustr.: Davies Babies


(...) não me parece que o espírito humano seja capaz de
conceber bem distintamente e ao mesmo tempo,
a distinção entre corpo e alma e a sua união
porque para este fim
necessário seria concebê-los como uma só coisa
e ao mesmo tempo como duas,
o que se contraria.

[Descartes, in 'Carta a Princesa'
(Elisabeth da Boémia),
de 28 de junho de 1643, p.693]

sábado, 6 de setembro de 2014

Tragédia

Ilustr.: Francine De Van Hove




A tragédia da vida não é
não atingir os seus objetivos.
A tragédia da vida é
não ter objetivos a atingir.

[Benjamin Mays]

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Conforto

Ilustr.: Winslow Homer



Diante desta profusão de descobertas,
acho mais seguro não mudar de hábitos.

[Martha Medeiros]

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Carta de Amor (3)

Ilustr.: Alberto Pancorbo
(...)

Há uns anos, este seria o momento de desmontar o discurso desta carta, de te mostrar os subtis mecanismos da alma e da máscara, de desdizer ironicamente o que já disse, de insinuar que, afinal, as-coisas-talvez-não-sejam-exactamente-assim. Mas as coisas são exactamente assim, e a carta, que poderia transformar-se num confortável exercício paródico, é, inevitavelmente, uma agonia e um embaraço. Esta carta é um acto de puro egoísmo, que eu até talvez nem tivesse o direito de praticar. É-te incómoda, necessariamente, e isso bastaria para que eu me abstivesse de a enviar, dentro de um envelope azul. Mas o azul fica-te tão bem, e as cores todas ficam em ti como tu ficas no mundo: exactamente.

Mas, repito: esta carta é um acto de puro egoísmo, é como se não tivesse destinatário. E, no entanto, é preciso enviá-la, para que seja uma carta de amor, para que faça sentido como carta. Para que seja amor. Mas podemos imaginar uma saída elegante: para que possas conservá-la como pura carta de amor, quero eu dizer, sem o embaraço de saberes que ela te foi escrita por alguém que não amas, não a assino. Dou-te tudo: até a hipótese de esta carta não ter sido escrita por mim.

(E não, esta carta não pode ter sido escrita por mim. És tu – em mim – que me faz escrever o que eu não escrevo. E isso é – de novo – o melhor de mim.)

[António Mega Ferreira]

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Carta de Amor (2)

Ilustr.: Paul Gauguin
(...)

Esta carta de amor é um excesso (e isso prova superiormente que é uma carta de amor): eu amo não a ideia de amar-te (durante muito tempo, eu julguei que era apenas isso), mas a ideia de perder-me no meu amor por ti. E mesmo amar-te é um excesso, porque tudo aconselharia que eu me limitasse a mitificar-te, que é a melhor forma de evitarmos enfrentar a realidade.

Porque a realidade, aqui, é como uma dor difusa, tu sabes como é, um incómodo ainda não localizado, que progressivamente se vai definindo e acertando, até que, insuportavelmente nítida, a sua imagem se nos impõe como uma evidência. A minha dor é que eu comecei a amar-te, sem o saber, durante aquele breve período de tempo em que sair de casa era a promessa reconfortante de ver-te e falar contigo. Eu não sabia, repito, mas o tempo ajudou-me a definir essa pequena dor, tão secretamente pavorosa: cada vez que estou contigo (cada vez mais, meu amor, cada vez mais) é como se a minha vida se virasse do avesso. E é verdade, é cada vez mais verdade que, quando penso nas coisas que ainda me falta fazer na vida, é em ti que penso. E tenho medo, como um animal que instintivamente foge do que sabe não poder atingir.

Eu penso em ti, ainda mais do que te digo, e tu estás em tudo, mesmo quando não te penso, tu és a grande razão, o horizonte sem nome que constantemente se desenha na minha imaginação de mim.

(...)

[António Mega Ferreira]

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Carta de Amor (1)

Ilustr.: Margarita Sikorskaia
Algum dia eu haveria de entrar na normalidade dos que te amam. Amo-te. E dói escrevê-lo (que é pior, meu amor, do que dizê-lo). Amo-te, absoluta, impossível e fatalmente. E ouço, adolescente, uma música adolescente, para me lembrar de ti, porque lembrar-me de ti é lembrar-me que não consigo esquecer-te. E ouço música porque ouvimos música quando amamos, e tudo, no amor, é música, acústica da alma que se quer ser devorada, e, neste caso, dor (tão deliciosamente insuportável) de amar sem sequência nem expectativa de contrapartida, amar unicamente o puro objecto que desgraçadamente amamos. Isto é uma carta de amor, e é possivelmente ridícula (prova maior de que é, realmente uma carta de amor), ou porque perdi o hábito de as escrever, ou porque nunca tive a coragem de as enviar.

Não percebes porque é que não te falo? Ainda não percebes que, na personagem que de mim eu enceno, não cabe a ameaça de uma derrota, a antecipação do desencanto, a sombra de um vexame? Não te falo, para não saber que o que eu te digo é apenas a forma contida de te dizer outra coisa, mas que essa coisa não é do teu mundo, nem do mundo que eu construí, nem do precário mundo que a nossa fragilíssima ternura mútua arquitectou. E tudo isto é literário, eu sei, mas – que queres? -, a literatura é o melhor de mim e é o melhor de mim que vive dentro da minha cabeça quando estou contigo.

E depois, afastamo-nos. Beijo-te a correr, não sei se já reparaste, e quase fujo, porque sair do pé de ti é regressar ao que não és tu, o teu olhar e as tuas mãos, a tua alma e a tua voz, e isso, meu amor, transformou-se no insuportável intervalo entre dois encontros.

(...)

[António Mega Ferreira]

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Não seja morno

Ilustr.: Ronald Companoca
Não querer dizer, não significa não ter vontade.
Portanto há quem passe por aqui, cito abaixo, algo que já devia ter dito há muito tempo.
Sei pouco sobre mim, a cada dia sei menos sobre os outros.
Por favor, eu te peço, me chame pra viver, me coloque pra pensar, refletir, padecer ou enlouquecer.
Mexa com os outros e com a consciência.
Não seja morno, peguei nojo de gente desse tipo.
O talvez.
O Quase.
O Não sei.
Me leve ao céu ou ao inferno, do contrário, eu te peço:
- Não perca seu tempo me tirando do chão.

[Kayque Meneguelli]