quinta-feira, 31 de julho de 2014

Enlace

Ilustr.: Alberto Pancorbo



A vida não passa de uma oportunidade de encontro;
só depois da morte se dá a junção;
os corpos apenas têm o abraço,
as almas têm o enlace.

[Victor Hugo]

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cada vez estou mais só, mais abandonado.

Ilustr.: Ronald Companoca

Cada vez estou mais só, mais abandonado.
Pouco a pouco quebram-se-me todos os laços. Em breve ficarei sozinho.

O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica na vida.
De aí a timidez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade, da emoção directa.

[Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação']

terça-feira, 29 de julho de 2014

Sorri

Ilustr.: Evelina Oliveira


... a sua tristeza não vem da solidão.
Vem das fantasias que surgem na solidão.
Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música...
Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz.
Mas bastava que ele se sentasse para que as fantasias surgissem.

[Rubem Alves, in 'A Solidão Amiga']

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A ti

Ilustr.: José Alves da Silva



Trago pro dia minha melhor alegria.
O resto é entre ela e Deus.


[Dan Cezar]

domingo, 27 de julho de 2014

Também eu


Ilustr.: Tamara de Lempicka

Nunca me confrontei com as desilusões porque sou um ser solitário.
Afasto-me das pessoas e observo-as de longe;
nunca consigo vê-las de muito perto, sem enquadramento.
Enfrentando a imperfeição, aprendi a perdoar.
Olho para a raiz das acções, e concluo que também eu a podia ter cometido...

[Inês Pedrosa]

sábado, 26 de julho de 2014

Sábado... à noite

Ilustr.: Salvador Dali

Como se a gente tivesse obrigação de fazer alguma coisa toda noite.
Só porque é sábado.
Essa obsessão urbanóide de aliviar a neurose a qualquer preço nos fins de semana, pode?
Tenho vontade de dizer nada, não vou fazer absolutamente nada.
Só talvez, mais tarde, se estiver de saco muito cheio, tentar o suicídio com uma-dose-excessiva-de-barbitúricos, uma navalha, um bom bujão de gás ou algo assim.
Se você quiser me salvar, esteja a gosto, coração.

[Caio Fernando Abreu]

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Comentário

Ilustr.: Ron Lightburn



Os primeiros quarenta anos de vida dão-nos o texto;
os trinta seguintes o comentário.


[Artur Schopenhauer]

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Jardim

Ilustr.: Karen Patkau


O segredo é não correr atrás das borboletas...
É cuidar do jardim para que elas venham até você.

[Mario Quintana]

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Sobre estas duras, cavernosas fragas

Ilustr.: Holly Sierra
Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n'alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas;

Razão feroz, o coração me indagas.
De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

[Bocage, in 'Sonetos' (LXXXIV)]

terça-feira, 22 de julho de 2014

O Verme

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez
Existe uma flor que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benéfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flor virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flor o cálix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flor é o coração,
Aquele verme o ciúme.

[Machado de Assis, in 'Falenas']

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Depois de tudo

Ilustr.: Russell Bowes
Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua guitarra
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

Perto de ti é perto de mim
e longe de tudo é tua ausência
e é cor de argila a lua
na noite do terremoto
quando no terror da terra
juntam-se todas as raízes
e ouve-se soar o silêncio
com a música do espanto.

O medo é também um caminho.
E entre suas pedras pavorosas
pode marchar com quatro pés
e quatro lábios, a ternura.
Porque sem sair do presente
que é um anel delicado
tocamos a areia de ontem
e no mar ensina o amor
um arrebatamento repetido

[Pablo Neruda]

domingo, 20 de julho de 2014

Olhe diferente

Ilustr.: Sonja Wimmer



Mude o modo como você olha para as coisas,
e as coisas que você olha mudarão.

[Wayne Dyer]

sábado, 19 de julho de 2014

Não sei quantas almas tenho

Ilustr.: Alberto Pancorbo
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não a tem calma.

Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.

[Fernando Pessoa]

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Terror de Te Amar

Ilustr.: Margarita Sikorskaia
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

[Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Obra Poética']

quinta-feira, 17 de julho de 2014

If I Had My Child to Raise Over Again

Ilustr.: Mark Shasha

If I had my child to raise over again,
I'd finger paint more, and point the finger less.
I'd do less correcting, and more connecting.
I'd take my eyes off my watch, and watch with my eyes.
I would care to know less, and know to care more.
I'd take more hikes and fly more kites.
I'd stop playing serious, and seriously play.
I'd run through more fields, and gaze at more stars.
I'd do more hugging, and less tugging.
I would be firm less often, and affirm much more.
I'd build self-esteem first, and the house later.
I'd teach less about the love of power,
And more about the power of love.
It matters not whether my child is big or small,
From this day forth, I'll cherish it all.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Vida a viver

Ilustr.: Cécile Vallée



Uma vida não questionada não merece ser vivida.

[Platão]

terça-feira, 15 de julho de 2014

Olhar para dentro

Ilustr.: Closeup of sunflower

É necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas estão dentro de nós,
onde os sentimentos não precisam de motivos nem os desejos de razão.
O importante é aproveitar o momento e aprender sua duração,
pois a vida está nos olhos de quem sabe ver.

[Gabriel Garcia Márquez]

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Viajante

Ilustr.: Mireille Levert

Mas não tenho mais tanta pressa.
Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo.
Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim.
Eu sou a viajante e a viagem.

[Ana Jácomo]

domingo, 13 de julho de 2014

(Im)possíveis

Ilustr.: Valeria Docampo
Não esgotei na altura própria a criança que temos de ser e de gastar.
Deve ser por isso que eu não distingo as realidades, que eu não vejo onde começa o impossível, ...
deve ser por isso que eu não escolho um destino para me assentar depois e ando a tropeçar à espera, à espera, sem mesmo disso ter perfeita consciência...
deve ser por isso que eu estendo a mão para um objecto e ele está mais longe que o comprimento do meu braço.
Deve ser por isso o meu anseio de conjunto universal, a minha curiosidade do que se disse e se escreveu, a desordem, gritante dentro e lenta fora, que em mim ondeia e me transporta e eu não sei expulsar nem quero.
Deve ser por isso que jamais lembrei o desmedido infinitamente frágil de minha alma e que, agora, lembrado e conhecido de mim mesmo, não hei-de ainda ter emenda...
(...) deve ser por isso que não consigo ser "pessoa grande".

[Jorge de Sena]

sábado, 12 de julho de 2014

Num sopro

Ilustr.: Salvador Dali

Derrete-se, aos poucos,
aquela velha vela dourada.
Apaga-se a chama num sopro
e de repente o tudo já é nada.
A luz, só a que nasce dos meus olhos,
tudo o resto é paisagem em aguarela.

O passado, tornou-se um presente desejado,
deixando o futuro entregue ao abraço prometido.

[Mário Sousa]

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A idade de ser feliz


Ilustr.: Paperman, by Disney

Existe somente uma idade para a gente ser feliz.
Somente uma época na vida de cada pessoa
em que se pode sonhar e fazer planos,
e ter energia bastante para realizá-los,
a despeito de todas as dificuldade e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encontrar com a vida
e viver apaixonadamente,
com o entusiasmo dos amantes
e a coragem dos aventureiros.
Fase dourada em que se pode criar e recriar a vida
à imagem e semelhança
dos nossos desejos;
e sorrir e cantar, e brincar e dançar,
e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores
e desfrutar de tudo com toda a intensidade,
sem preconceito nem pudor.
Tempo em que cada limitação humana
é só mais um convite ao crescimento;
um desafio a lutar com toda energia
e a tentar algo novo, de novo e de novo
e quantas vezes for preciso.
Essa idade tão especial e tão única
chama-se presente...
E tem apenas a duração do instante que passa...

[Mário Quintana]

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Se me deixares

Ilustr.: Pierre Carrier-Belleuse


Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.

Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;

Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.

[António Botto]

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Mérito e Auto-Suficiência

Ilustr.: Ciro Palumbo
Só os baixos méritos podem ser enumerados. Temei, quando os vossos amigos vos disserem o que fizeste bem e narrarem tudo; mas quando permanecerem com olhares incertos e tímidos de respeito e certo descontentamento e silenciarem por muitos anos a sua opinião, podeis começar a ter confiança. Os que vivem para o futuro devem parecer egoístas aos que vivem para o presente.

(...) A face que se me apresenta o carácter é a auto-suficiência. Reverencio a pessoa que é muito rica de carácter, porque não posso concebê-la solitária, ou pobre, ou exilada, ou infeliz, ou protegida, mas um eterno protetor, benfeitor e bem-aventurado. O carácter é centralidade, impossibilidade de ser deslocado ou posto à margem. Um homem deve dar-nos a ideia de massa.

A sociedade é frívola e divide o seu dia em fragmentos, a sua conversação em cerimónias e derivativos. Mas visitando um homem talentoso, considerarei perdido o meu tempo se se limitar a amabilidades e cerimónias; antes, ele deverá saber colocar-se solenemente no seu lugar e deixar-me julgar, por assim dizer, a sua resistência; saber que encontrei um valor novo e positivo! - grande deleite para nós ambos. Já é muito ele não aceitar as opiniões e usanças convencionais. Esse não-conformismo servirá de aguilhão e lembrança e qualquer pesquisador terá que ouvi-lo, em primeiro lugar.

[Ralph Waldo Emerson, in 'O Carácter']

terça-feira, 8 de julho de 2014

O Amor

Ilustr.: The Art of Eternal Love

Estou a amar-te
como o frio corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.

[Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"]

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Anjos e demónios

Ilustr.: Lauri Blank






Cada um descobre o seu anjo
tendo um caso com o demónio.

[Mia Couto]

domingo, 6 de julho de 2014

Independência

Ilustr.: Eugenio De Blaas



É fácil viver no mundo conforme a opinião das pessoas.
É fácil, na solidão, viver do jeito que se quer.
Mas o grande homem é aquele que, no meio da multidão,
mantém com perfeita doçura a independência da solidão.

[Ralph Waldo Emerson]

sábado, 5 de julho de 2014

No Entardecer dos Dias de Verão

Ilustr.: Nina Kuriloff
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fôssemos nós como devíamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir...

[Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLI"]

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Pouco importa

Ilustr.: 'little house' by *ironland on deviantART


- Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
- Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.
- Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.
- Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.

[Lewis Carroll, in 'Alice no País das Maravilhas']

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Tentação

Ilustr.: Salvador Dali

A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe.
Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu,
com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal.
Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro.
É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.

[Oscar Wilde]



quarta-feira, 2 de julho de 2014

Isto

Ilustr.: Kyounghwan Kim
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!

[Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"]

terça-feira, 1 de julho de 2014

Amo

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez
Amo aquilo que arde
o que voa e se abre
o que enlouquece e cresce
o que salta e se move
aquilo que bebe os ventos
e é música e contacto
o que é vasto e é casto
o que é milagre e perigo
e se espreguiça e respira
e viaja por capricho.
Amo viajar descalço.

[Carlos Edmudo de Ory]