sábado, 31 de janeiro de 2015

Os Ombros Suportam o Mundo

Ilustr.: Viviana González
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

[Carlos Drummond de Andrade]

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Aspirações

Ilustr.: Ronald Companoca




Ninguém pode nesta vida ter satisfeitas as suas aspirações,
porque nunca um bem criado sacia as aspirações humanas de felicidade.

[S. Tomás de Aquino]

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O corpo reage ao coração ou reage à mente?

Ilustr.: Mark Shasha
Estou tão cansada. Quase não tenho força. Hoje estou naqueles dias em que dá vontade de dormir e acordar dez anos depois. Você já ouviu falar em sono reparador? Queria dormir e acordar dez anos mais linda e dez anos mais burra.
Interessa a você saber que estou apaixonada?
Impressionante como essa palavra acorda os outros. Eu estou apaixonada, mas não é por uma pessoa. Estou apaixonada pela lembrança de algo leve, solto e rápido, como uma bola de gás que escapa da nossa mão e passa a ficar cada vez menor e mais distante.
Estou apaixonada pelo impacto da vida, por um tiro certeiro e bem mirado, pelo arrebatamento provocado pelo descuido das minhas defesas.
Quem está no comando dentro de nós? Andei flertando com o perigo e no entanto o perigo estava dentro de mim, dentro desse coração que empacou nos 15 anos, aquela época em que eu era uma velha e acreditava no amor. Toda mulher romântica é uma idosa. Não acredito que eu tenha caído nessa cilada, me apaixonar por uma situação. Por que não estou apaixonada por alguém, estou apaixonada por algo. Algo completamente inatingível. Estou apaixonada por marcar encontros, por receber mensagens safadas, emails, por estacionar olhando pros lados, temendo ser reconhecida. Apaixonada por entrar no apartamento de um estranho, por tirar a roupa, por gozar com um estranho. Apaixonada por aquilo que inspira os filmes B e os romances vendidos em banca. Quem está no comando, me diga? É claro que ele tem rosto, nome e sobrenome. Mas isolado, longe do cenário, ele não me comove. Ele me comove acionando em mim a outra, aquela que só deixo sair da casca de vez em quando. Ele é o xerife que dá liberdade condicional ao meu lado fora-da-lei. Se o xerife desiste da brincadeira, ela precisa voltar para sua prisão domiciliar. Não me venha falar de outros namorados, não me interessa uma transferência imediata, seria simplista demais. Quero o circo todo a que tenho direito: sedução, fantasia, tempo. Quero um romance longo, quero intimidade. Fazer cena de ciúme, terminar, voltar, amar, brigar de novo, telefonar, pedir desculpas, retornar. Amantes bem comportadas são um tédio. Se eu estivesse no comando, pinçaria do meu caderninha meia dúzia de frases que liquidariam a questão. "Foi bom enquanto durou". "O destino sabe o que faz". "Tudo tem seu preço". "O show deve continuar". Este tipo de clichê. Mas quem está no comando é ela, a que não quer voltar pra cela. Rebelião no presídio feminino: ela fugiu do meu controle. Ela é romântica como uma adolescente. Visceral. Caótica. Ela chora como uma menininha. Cria diálogos tão convincentes durante suas madrugadas insones que chega a acreditar que eles aconteceram. Viajandona. Doce. Áspera. Virginal. Ela me enlouquece. Ela determina a hora de voltar pra casa, e eu aguardo por ela com uma ansiedade quase sexual. Quem está apaixonada? Ela por ele? Eu por ela? Ou tudo não passa de um sentimento solto, sem dono, caçoando de todos nós?

[Martha Medeiros, 08/05/09]

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Primeiramente

Ilustr.: Cécile Vallée


Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

[Eugénio de Andrade, in 'Poesia e Prosa']

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Saudade

Ilustr.: Aida Guardai
Já é tarde da noite, e eu aqui, pensando em pessoas, lugares, fatos, palavras...
umas verdadeiras, outras nem tanto.
Sentir saudade, das coisas que não fiz, das palavras que omiti, dos momentos que eu perdi, e dos olhares que eu não vi, pelo menos fingi que não vi.

Saudade é uma das palavras mais presentes na poesia de amor da língua portuguesa e também na música popular, "saudade", só conhecida em galego-português, descreve a mistura dos sentimentos de perda, distância e amor. A palavra vem do latim "solitas, solitatis" (solidão), na forma arcaica de "soedade, soidade e suidade" e sob influência de "saúde" e "saudar". (Wikipédia)

E quem aqui, nunca ouviu essa palavra?
Saudade.
Saudade ...
Palavra super estimada em poemas e textos amorosos.
Em meio aos meus peculiares devaneios, pude notar que ela talvez...

Seria um mix de todos os outros sentimentos, ou apenas o exagero de um?
Dependência, carência, amor, tristeza, felicidade, mais o que? O que mais pode ser acrescentado?
Uma vez me contaram que toda palavra, toda, sem exceção de nenhuma, tem diversos significados, cada um para cada pessoa.
Supondo que o nosso planeta seja habitado por 6,6 bilhões de pessoas, então o dito cujo, teria 6,6 bilhões de significados?

Saudade de um lugar ...
de um momento ...
de um sentimento ...
de um cheiro ...
de um gosto ...
ou simplesmente, saudade de algo que nunca existiu, saudade da tentativa que jamais se tentou.

Provavelmente, embriagadas pelo sono, minhas palavras tornaram-se sem nexo, peço desculpas a quem nada entendeu, por essas palavras idiotas, e essa filosofia barata de botequim.

Nem tudo é o que se ouve, ou se vê, às vezes para sabermos a real intensidade das coisas, precisamos vivê-las.

"O problema dessa saudade, é agir feito parasita, sem perceber, sem nem notar, ela vai te cercando, te moldando. Quando você menos espera ela salta diante de seus olhos, sem nenhum aviso, sem nenhum pudor.
E assim como chega, vai embora, para mais tarde voltar e fazer tudo de novo, como se isso, fosse rotina, fosse favor...”

[Kayque Meneguelli]

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Resíduo

Ilustr.: Katie m. Berggren

(...)

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

(...)

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

[Carlos Drummond de Andrade]

domingo, 25 de janeiro de 2015

O Silêncio

Ilustr.: Ricardo Casal
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

[Eugénio de Andrade, in 'Obscuro Domínio']

sábado, 24 de janeiro de 2015

Um dia

Ilustr.: Jeremy Lipking



Ainda não tenho aquelas mãos cansadas
Um dia virei a ter
Ainda não tenho as veias azuis à mostra
Um dia virei a ter
Ainda não tenho a cabeça branca
Um dia virei a ter
Ainda não esqueci que te amo
Um dia virei a esquecer
A olhar para ti
Sem te reconhecer
Um dia tu e eu
Havemos de envelhecer
E morrer

[Helena Sacadura Cabral]

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Estigma

Ilustr.: Georgy Kurasov


Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

[Ary dos Santos]

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O valor da cooperação

Ilustr.: Katie m. Berggren



[...]

completem a minha alegria,
tendo o mesmo modo de pensar,
o mesmo amor,
um só espírito e uma só atitude.

Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade,
mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos.

Cada um cuide, não somente dos seus interesses,
mas também dos interesses dos outros.

[Filipenses, 2:2-4]

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O sal da língua

Ilustr.: Guillamon
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.

Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

[Eugénio de Andrade]

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Não fugir. Suster o peso da hora

Ilustr.: John Singer Sargent


Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.

[Cristovam Pavia]

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Branco e vermelho

Ilustr.: Chanelle Kotze
A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.

Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Palidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos.
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.

Ó morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...

[Camilo Pessanha]

domingo, 18 de janeiro de 2015

Impaciente

Ilustr.: Cécile Vallée




Não seja impaciente.
A felicidade nem sempre está longe de si.

[Jossei Toda]

sábado, 17 de janeiro de 2015

Recusa

Ilustr.: Claudia Tremblay
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda

[Maria Teresa Horta]

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Aplauso

Ilustr. from ironland



Nenhum ato é tão privado
que não procure aplauso.

[John Updike]

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Depois é sei lá

Ilustr.: Katya Longhi

Se amarem alguém, digam que amam.
Partilhem o vosso conforto por saber que aquela vida e a vossa vida têm um lugar de encontro.
Digam a vossa gratidão.
O vosso contentamento.

A festa que acontece dentro de vocês de todas as vezes que se lembram que aquela pessoa existe.
E se for muito difícil dizer com palavras, digam de outras maneiras que também possam ser ouvidas. Preparem surpresas.
Bordem delicadezas no tecido às vezes áspero das horas.

Reinaugurem gestos de companheirismo.
Mas, não deixem para depois.
Depois é um tempo sempre duvidoso. Depois é distante daqui.
Depois é sei lá…

[Ana Jácomo]

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Perspectiva

Ilustr.: Claudio Cerri




Tudo na vida é questão de perspectiva.
Procure o melhor ângulo.

[Marcelo Predebon]

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Prometo falhar

Ilustr.: Pièrre Carrier-Belleuse
Prometo falhar.

Sem hesitar. Prometo ser humano, aqui e ali ser incoerente, aqui e ali dizer a palavra errada, a frase errada, até o texto errado, aqui e ali agir sem pensar, para que raios serve pensar quando te amo tão desalmadamente assim? Prometo compreender, prometo querer, prometo acreditar. Prometo insistir, prometo lutar, descobrir, aprender, ensinar. Tudo para te dizer que prometo falhar. E Deus te livre de não me prometeres o mesmo.

«Foste a maneira mais bonita de errar.»

E ela sentiu a respiração a faltar, hesitou como nunca tinha hesitado, quis pensar aquilo tudo, colocar todas as possibilidades nos pratos da balança, mas quando deu por si não disse «quero tanto mas deixa lá», quando deu por si estava a pensar em como conseguira deixar de pensar, um ou dois segundos de ela própria, o amor só existe quando nos oferece pelo menos um ou dois segundos de nós próprios.

«Se voltas a falhar juro que te amo para sempre.»

E ela falhou.

[Pedro Chagas Freitas, in 'Prometo Falhar']

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Colapso

Ilustr.: Katie m. Berggren


Tudo está
eternamente
escrito
(Spinosa)

Tudo está
eternamente
em Quito
(Uma Rosa)

[Mário Cesariny]

domingo, 11 de janeiro de 2015

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Ilustr.: Viviana González
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

[Luís de Camões]

sábado, 10 de janeiro de 2015

Pensar em Deus é desobedecer a Deus

Ilustr.: Denis Nunez Rodriguez
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

[Alberto Caeiro]

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Criança

Ilustr.: Valeria Docampo

A criança é
alegria como o raio de sol e
estímulo como a esperança.

[Coelho Neto]

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Eu

Ilustr.: Georgy Kurasov
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida! ...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo para me ver
E que nunca na vida me encontrou!

[Florbela Espanca, in 'Livro de Mágoas']

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Quando eu morrer, filhinho

Ilustr.: John Singer Sargent


Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

[Alberto Caeiro, in 'O Guardador de Rebanhos']

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Prece

Ilustr.: Betzaida Irizarry
São três e chegam de longe
com um sonho na bagagem:
querem estar com o menino
antes que finde a viagem.

São magos do Oriente,
mas não são magos de rua;
acreditam nos cometas,
nas estrelas e na lua.

São os magos viajantes
que resistem à fadiga,
seguindo o rasto de luz
de uma estrela que é amiga.

São os Reis Magos que chegam
das mais remotas paragens
com ouro, incenso e mirra
que trazem de outras viagens.

São os Reis Magos felizes,
joelho assente na terra,
com um voto e uma prece:
“Menino, põe fim à guerra.”

Gaspar, Baltazar e Belchior
pedem à estrela brilhante:
“Dá nome a este menino
antes que o galo cante.”

Viemos aqui nesta noite
com um desejo profundo:
queremos ver o menino
que vem dar esperança ao mundo.

[José Jorge Letria, in 'O Livro do Natal']

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Hoje não!

Ilustr.: Elephant by ironland


Amanhã fico triste, amanhã.
Hoje não. Hoje fico alegre.
E todos os dias, por mais amargos que sejam,
Eu digo: Amanhã fico triste, hoje não.
Para Hoje e todos os outros dias!!

[Encontrado na parede de um dormitório de crianças
no Campo de extermínio nazi do Guetto de Varsóvia]

domingo, 4 de janeiro de 2015

Dói (2)

[...]
Ilustr.: Katie m. Berggren
Eu sei que dói.
Porque a vida parece começar depressa mas não é verdade. Quando damos por nós e somos adultos, aí sim, os dias deixam de ter vinte e quatro horas e falta-nos fazer tanto, não sabemos o quê, nem onde, mas sabemos que há uma porta à nossa espera, uma fresta escondida por onde vamos fugir para sempre, nem que seja só até amanhã.
Eu sei que dói mas é assim e não vale a pena tentar que seja diferente.
Digo-te eu que tentei ser a menina exemplar, a mulher exemplar e um dia abri os braços e voei, mesmo que ninguém tenha sabido, aterrei com o corpo no chão e nunca fiz mais nada até hoje senão levantar-me e tornar a cair e tornar a levantar-me.
A vida é um mistério tão maravilhoso que a maior parte das vezes nos confunde, nos embriaga ou nos deixa de rastos, não sei explicar porquê, mas é assim.
Eu sei que dói mas os outros têm outras dores.
Os outros, todos os outros com quem fazemos um esforço para lidar, para criar laços, para estabelecer pontes e contudo estamos sempre sozinhos, nós e a nossa cabeça que não pára de sonhar, de rodar e rodopiar.
Como dizia Pessoa, o melhor do mundo são as crianças.
E a criança que há em nós não cresce nunca, não deixa nunca de ser o menino com medo do escuro e vontade de espreitar o que está para lá do muro.
Mas é essa eterna criança que nos levará ao colo a vida toda e nos permitirá fazer grandes coisas.
Grandes feitos, grandes sofrimentos, grandes desilusões, grandes culpas.
Eu sei que dói mas acredita, não querias ser como todos os outros porque tudo o que ainda vais viver é incomensuravelmente maior do que eles podem sequer imaginar.
Nunca mintas. Nunca deixes de sonhar e nunca te esqueças que a única coisa verdadeira nesta vida, neste planeta, neste momento exacto da história do universo é a carne da tua carne.
Tudo o resto é passageiro, quimeras e fumos de queimadas de Verão.
A razão de termos vindo aqui é essa. A de olhar para um ser que concebemos e perceber a dimensão desse amor.
Eu sei que vai doer a vida inteira. Porque o amor verdadeiro é este e por isso é como uma parte do nosso corpo que nos é retirada e vive fora de nós.
Somos livres de tudo e para sempre, exceptuando deste amor infinito!

[Luísa Castel-Branco]

sábado, 3 de janeiro de 2015

Peço-te

Ilustr.: Genevieve Godbout

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser
Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

[Sophia de Mello Breyner Andresen]

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Dói (1)

Ilustr.: Ronald Companoca
Eu sei que dói.
Há momentos em que a alma é demasiadamente grande para caber no nosso corpo e o mundo parece pequeno demais.
É então que nos vem uma ânsia de voar, de sonhar que bastaria abrir a janela, abrir os abraços e levantar voo para longe de tudo e de todos.
Nascer de novo e ser diferente e ser igual e sonhar como da primeira vez, saborear a paixão como da primeira vez, sentir o medo na boca do estômago pela primeira vez e pela primeira vez transformá-lo em nada mais que uma formiga espalmada no chão.
Eu sei que dói.
Que muitas e muitas vezes gostaríamos de acordar exactamente igual a todos. Aqueles que nos rodeiam e levam a vida como é suposto, sem almejar por castelos para conquistar nem aventuras maravilhosas à porta de casa.
Os dias nunca são iguais. Às vezes a dor no peito é que é igual e precisamos rapidamente de sentir o ar no rosto, sentir o cheiro da chuva e abrir a porta e sair sem destino.
Temos longas batalhas dentro de nós. O cérebro que nunca consegue pensar numa só coisa, o corpo que não se satisfaz enquanto não esgotamos toda e qualquer energia, para fazer nascer outra e outra.
Temos medos que os outros não conhecem porque nunca acreditaram em dragões, nem cavalos alados, nem em céus vermelhos de sangue com nuvens de todas as cores do arco-íris.
Eu sei que dói.
Dói de cada vez que nos apaixonamos por um projecto, por um sonho impossível, por um objectivo, por alguém e depois, muito antes de toda a gente, já o imaginámos, já o concretizámos e de repente o que era urgente e fundamental e o mais importante do mundo torna-se assunto resolvido, passado, algo sem interesse.
Claro que os outros têm tudo o resto. O sossego do corpo, da alma e do coração, dos músculos e sonos profundos sem pesadelos e passeios perdidos entre labirintos.
Claro que os outros têm tantas coisas e contudo parecem-nos de um vazio total.
É tão difícil encontrar alguém que tenha interesse por mais de meia hora, que tenha conversa ou ideias ou apenas loucuras de visionário.
Se tivéssemos nascido há séculos atrás, partiríamos a explorar o Pólo Norte, o deserto mais longínquo onde, temos a certeza absoluta, iríamos encontrar o Principezinho com a sua rosa.
Agora, que acabaram as caravelas, as cruzadas e os moinhos de vento, cabe-nos inventar tudo de novo, com outros nomes e outras formas mas sabendo nós que tudo já foi inventado, todos os grandes livros já foram escritos, os grandes filmes realizados e só nos resta fingir que todos os dias partimos montados em cavalos alados, galgando as colinas de Lisboa e aterrando em planetas sem nome ou apenas no outro lado da rua, tanto faz.
Eu sei que dói porque nunca nada é tão grande, nem tão forte, nem tão duradouro quanto sonhámos.
Apenas o medo. Apenas a tristeza de sermos estrangeiros onde quer que estejamos, seja com quem for que estejamos.
É tudo uma questão de tempo até o tempo nos pesar demais, até qualquer pessoa, seja ela quem for, se tornar pesada demais para ocupar o ar que respiramos.
Vivemos meio-dia em pleno Verão, beijados por um sol que nos aquece o sangue e nos dá uma força de vida inacreditável para os outros, e de repente sem aviso, sem nada, a luz desaparece e fica noite sem luar, e a tristeza instala-se até nos fazer doer os ossos, e as lágrimas não são lágrimas mas farpas que atiramos a alguém, seja quem for.
Contudo, nós amamos total e incondicionalmente.
Durante o tempo que dura e que não sabemos medir e explicar, amamos e queremos fazer rir a quem amamos, quereremos dar-lhe o mundo numa caixa de chocolates e numa mão cheia de estrelas.
No dia em que acordamos e descobrimos que já partimos e não sabíamos, que apenas o nosso corpo, qual carcaça sem préstimo para ali está, nesse dia e uma vez mais, o lado negro da noite sem luar toma conta de nós e mais nada há a fazer.
Eu sei que dói.
[...]

[Luísa Castel-Branco]

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Feliz 2015

Eric Nikkessen




Cada dia é uma ocasião especial.
Guarde apenas o que tem que ser guardado:
lembranças, sorrisos, poemas, cheiros, saudades, momentos.

[Martha Medeiros]