sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Medo de dizer quem somos

Ilustr. from http://www.carsa.rs/bogocovek-i-robocovek/

Porque razão algumas vezes, ou até muitas vezes, temos medo de dizermos quem somos?

Nós temos medo de dizer quem somos verdadeiramente, porque o outro pode não gostar e, o que somos, a nossa pessoa, a nossa identidade, a nossa história, é tudo o que temos para dar ao outro e a nós mesmos, sobretudo a nós mesmos. E uma invalidação da nossa pessoa pode ser arrasadora. Mas importa o que os outros pensam de nós? Sim, importa, e deverá ser somente para quem é fundamentalmente importante para nós. Mas nem sempre é assim. 

Nós nascemos e existimos, ganhamos um significado enquanto pessoas, na relação com o outro. Desde sempre e para sempre. Por conseguinte, qualquer distorção relacional é sempre desagradável. Contudo, no fim, percebemos que somos nós quem decide continuar a atribuir importância a essa invalidação. Porquê? Porque na verdade, de alguma forma, quem invalidou a nossa pessoa fomos nós próprios. O outro, aquele que supostamente nos invalidou, continua a sua vida, nos seus afazeres. E nós? Nós continuamos na nossa jornada relacional com nós mesmos, a intra-pessoal. Somos sempre nós os primeiros e os últimos a fazer a crucificação da nossa pessoa. Os motivos, a ferida, a suposta invalidação que veio de fora, do outro, já existia na nossa vida de dentro e só por isso, repito, e só por isso, é que se criou a ilusão de que foi o outro que nos invalidou. Embora a nossa vida só se arquitecte e tenha sentido na relação com o outro, somos nós que a comandamos e decidimos o que fazer com as coisas que outro nos dá e que despertam o que já existe dentro de nós.

Então porque razão algumas vezes, ou até muitas vezes, temos medo de dizermos quem somos?
Porque mais do que nos convidar a lidar com a dor pela razão do outro não gostar de nós, trata-se essencialmente de nos convidar a olhar para a nossa vida de dentro e vermos coisas com as quais temos dificuldade em manejar, em pensar, em sentir.

[Virgílio Baltasar (José Virgílio Gouveia Baltasar)]

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Faça o que fizer

Ilustr.: Albin Veselka

Todos os dias temos diversas alternativas, o que vestir, o que calçar, por onde andar, com quem falar, ser simpático, antipático, etc...

Contudo, penso que no mundo em que vivemos, coisas bobas, e de mera importância acabam nos afetando de uma maneira inexplicável. Você tem o poder de escolher o que fazer com o seu dia, e mesmo assim parece que os outros, a felicidade, a vida das outras pessoas nos afeta e incomoda tanto.

O Problema é, nos preocupamos tanto com a felicidade e vida alheia, que acabamos esquecendo de nossa própria vida. Colocamos nossa plenitude, na mão de qualquer pessoa, e isso definitivamente não é o certo. Só você tem o poder de mudar suas escolhas e sua vida, lembrando sempre que cada escolha que fizermos, trará em conjunto uma serie de consequências. Tanto boas como ruins.

Sua família, amigos, podem ate te ajudar em diversas coisas, mas pude perceber que as decisões mais importantes a serem tomadas, devem ser decididas quando estamos sozinhos. E nada de pensar muito, quando pensamos demais no que fazer, ficamos estressados, desgastados. Bom mesmo é saber o que fazer, quando fazer e com a mente tranquila.

É óbvio que ninguém, em hipótese alguma vive sozinho, mas vá com calma, não deposite sua fé exageradamente em ninguém, lembre-se que você é o autor da sua própria historia, e no final de tudo é você contra você mesmo.

Não se deve obrigar ninguém a gostar de você, a coisa mais saudável a se fazer é apenas tentar dar bons motivos para que isso aconteça, e se caso não funcionar? bom, pelo menos a sua parte você fez.

E agora é a sua vez, o que vai fazer? deixar que pequenos problemas estraguem todo o seu dia, e ficar mau humorado, ou levantar a cabeça, sorrir e deixar as pessoas curiosas querendo saber o motivo de tanta felicidade?

Faça o que fizer, não se engrandeça nem se rebaixe demais.

[Kayque Meneguelli]

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Alusão a mim

Ilustr.: Albin Veselka
Tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras; sou irritável e piro facilmente; também sou muito calma e perdoo logo; não esqueço nunca; mas há poucas coisas de que eu me lembre; sou paciente, mas profundamente colérica, como a maioria dos pacientes; as pessoas nunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdoo de antemão; gosto muito das pessoas por egoísmo: é que elas se parecem no fundo comigo; nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade, mas como pode ser verdade, se as ofensas saem de minha cabeça como se nunca nela tivessem entrando?
Tenho uma paz profunda, somente porque ela é profunda e não pode ser sequer atingida por mim mesmo; se fosse alcançável por mim, eu não teria um minuto de paz; quanto a minha paz superficial, ela é uma alusão à verdadeira paz; outra coisa que esqueci é que há outra alusão em mim - a do mundo grande e aberto; apesar do meu ar duro, sou cheia de muito amor e é isso o que certamente me dá uma grandeza.

[Clarice Lispector]

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Ler devia ser proibido

Ilustr.: ...


Ler devia ser proibido...
Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas:
acorda os homens para realidades impossíveis,
tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e vulgar em que vivem.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

[Guiomar de Grammont]

terça-feira, 1 de setembro de 2015

A coisa mais pequenina

Ilustr.: Gentiane Magnan


Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver
bago de arroz
grão de areia
semente de linho
suspiro de pássaro
pedra de sal
som de regato
a coisa mais pequena do mundo
a sombra do meu nome
o peso do meu coração na tua pele.

[Rosa Lobato de Faria]

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Sê paciente

Ilustr.: Rihards Donskis




Sê paciente;
espera que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

[Eugénio de Andrade]

sábado, 20 de junho de 2015

Num meio-dia de fim de Primavera

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Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

[...]

[Alberto Caeiro, in 'O Guardador de Rebanhos']

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Senhor Doutor, lhe começo?

Eu somos tristes.
Não me engano, digo bem.
Ou talvez nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida.
Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um.
Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas das existências.
A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de mim?
Explico: os moribundos tudo são permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles antecipam, pré-falecidos. O moribundo insulta-nos? Perdoamos, com certeza. Cagam nos lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais nada. Arranja lá uma maneira, senhor doutor. Desenrasca lá uma maneira de eu ficar moribundo, submorto.
Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo. Devido, talvez, o cansaço do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal eu? O lugar da minha vida não é esse tempo?
Deixo os pensamentos, vou directo na história. Começo no meu cunhado Bartolomeu. Aquela noite que ele me veio procurar, foi onde iniciaram desgraças.

[Mia Couto, “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?” (excerto), in 'Vozes Anoitecidas']

terça-feira, 26 de maio de 2015

A Fúria Mais Fatal e Mais Medonha

Ilustr.: Wlad Safronov
Das Fúrias infernais foi sempre a Inveja
No mundo a mais fatal e a mais medonha,
Pois faz dos bens dos outros a peçonha
Com que a si mesma se envenena e peja.

Com ira e com furor, raivosa, arqueja,
Com vinganças, traições, com ódios sonha.
Onde quer que se encoste e os olhos ponha,
Tragar as ditas dos mortais deseja.

Mãe dos males fatais à Sociedade,
Vidas, honras destrói, cismas fomenta,
Nutrindo n'alma as serpes da Maldade.

O próprio coração que come a alenta,
Vive afogada em ondas de ansiedade,
Da frenética raiva se alimenta.

[Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos']

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Os ninguéns

Ilustr.: Viviana Gonzalez
As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

[Eduardo Galeano]

terça-feira, 28 de abril de 2015

Que nunca te falte...

Ilustr.: Katie m. Berggren





Que nunca te falte:
A estrada que te leva e a força que te levanta
O amor que te humaniza e a razão que te equilibra
O pão de todo dia e o verso de cada poema.

[Lou Wit]

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Eterno

Ilustr.: BEELD.MOTION

O que significa eterno?
Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata...
Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra, é bobagem.Você não só não esquece a outra pessoa como pensa muito mais nela...
Um dia descobrimos que se apaixonar é inevitável...
Um dia percebemos que as melhores provas de amor são as mais simples...
Um dia percebemos que o comum não nos atrai...
Um dia saberemos que ser classificado como o "bonzinho" não é bom...
Um dia perceberemos que a pessoa que nunca te liga é a que mais pensa em você...
Um dia percebemos que somos muito importante para alguém, mas não damos valor a isso...
Um dia percebemos como aquele amigo faz falta, mas ai já é tarde demais...
Enfim...
Um dia descobrimos que apesar de viver quase um século esse tempo todo não é suficiente para realizarmos todos os nossos sonhos, para dizer tudo o que tem que ser dito...
O jeito é: ou nos conformamos com a falta de algumas coisas na nossa vida ou lutar para realizar todas as nossas loucuras...
Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação.

[Mário Quintana]

domingo, 26 de abril de 2015

Adeus

Ilustr.: Duy Huynh
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

[Eugénio de Andrade]

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mais nada a fazer

Ilustr.: Brita Seifert (1963)
Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada.
Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés.
Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido.
Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer.
Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho… o de mais nada fazer.

[Clarice Lispector]

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Ideias metafísicas

Ilustr.: Georgy Kurasov
A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.

A verdade? — É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha? De quê?

Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única verdade para mim sou eu próprio. Isolar-me tanto quanto possível dos outros é respeitar a verdade.

Toda a metafísica é a procura da verdade, entendendo por Verdade a verdade absoluta. Ora a Verdade, seja ela o que for, e admitindo que seja qualquer coisa, se existe existe ou dentro das minhas sensações, ou fora delas ou tanto dentro como fora delas. Se existe fora das minhas sensações, é uma coisa de que eu nunca posso estar certo, não existe para mim portanto; é, para mim, não só o contrário da Certeza, porque só das minhas sensações estou certo, mas o contrário de ser, porque a única coisa que existe para mim são as minhas sensações. De modo que, a existir fora das minhas sensações, a Verdade é para mim igual à Incerteza e não-ser — não existe e não é a verdade, portanto. Mas concedamos o absurdo de que as minhas sensações possam ser o erro, e o não-ser (o que é absurdo, visto que elas, com certeza, existem) — nesse caso a verdade é o ser e existe fora das minhas sensações totalmente. Mas a ideia Verdade é uma ideia minha; existe, por isso, dentro das minhas sensações: portanto, no que Verdade abstracta e fora de mim, a verdade existe dentro de mim — contradição, portanto; e erro, consequentemente.

A outra hipótese é que a verdade exista dentro das minhas sensações. Nesse caso ou é a soma delas todas, ou é uma delas, ou parte delas. Se é uma delas, em que se distingue das outras? Se é uma sensação, não se distingue essencialmente das outras; e, para que se distinguisse, era preciso que se distinguisse essencialmente. E se não é uma sensação, não é uma sensação.

Se é parte das minhas sensações, que parte? As sensações têm duas faces — a de serem sentidas e a de serem dadas como coisas sentidas, a parte pela qual são minhas e a parte pela qual são de «coisas». É uma destas partes, que a verdade, a ser parte das minhas sensações, tem de ser. (Se é de qualquer modo um grupo de sensações unificando-se a constituir uma só sensação, cai sob a garra do raciocínio que liquida a hipótese anterior.)

Se é uma das duas faces — qual? A face «subjectiva»? Ora essa face subjectiva aparece-me sob uma de duas formas — ou a da minha «individualidade» una ou [a] de uma múltipla individualidade «minha». No primeiro caso é uma sensação minha como qualquer outra e já fica refutada no argumento anterior. No segundo caso, essa verdade é múltipla e diversa, é verdades — o que é contraditório com a ideia de Verdade, valha ela o que valer.

Será então a face objectiva? — O mesmo argumento se aplica, porque ou é uma unificação dessas sensações numa ideia de um mundo exterior — e essa ideia ou não é nada ou é uma sensação minha, e se é uma sensação, já fica refutada essa hipótese; ou é de um múltiplo mundo exterior, e isso reduz-se à mesma contradição entre pluralidade de verdades e a essência da ideia de Verdade.

Resta analisar se a Verdade é o conjunto das nossas sensações. Essas sensações ou são tomadas como uma ou como muitas. No primeiro caso voltamos à já rejeitada hipótese. No segundo caso a Verdade como ideia desaparece, porque se consubstancia com a totalidade das nossas sensações. Mas para ser a totalidade das nossas sensações, mesmo concebidas como nossas sensações, nuamente, a verdade fica dispersa — desaparece. Porque, ou se baseia na ideia de totalidade, que é uma ideia (ou sensação) nossa, ou não se apoia em parte nenhuma. Mas nada prova, mesmo, a identidade de verdade e totalidade. Portanto, a verdade não existe.

Mas nós temos a ideia...

Temos, mas vemos que não corresponde a «Realidade» nenhuma, suposto que Realidade significa qualquer coisa. A Verdade é portanto uma ideia ou sensação nossa, não sabemos de quê, sem significação, propósito ou valor, como qualquer outra sensação nossa.

Ficamos portanto com as nossas sensações por única «realidade», entendendo que «realidade» não tem aqui sentido nenhum, mas é uma conveniência para frasear. De «real» temos apenas as nossas sensações, mas «real» (que é uma sensação nossa) não significa nada, nem mesmo «significa» significa qualquer coisa, nem «sensação» tem um sentido, nem «tem um sentido» é coisa que tenha sentido algum. Tudo é o mesmo mistério... Reparemos porém em que nem tudo quer dizer coisa alguma, nem «mistério» é palavra que tenha significação.

[Fernando Pessoa, in 'Ideias metafísicas do Livro do Desassossego']

terça-feira, 14 de abril de 2015

Somos porque ganhamos

Ilustr.: Anil Tortop





Somos porque ganhamos.
Se perdemos, deixamos de ser.

[Eduardo Galeano]

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Medo global

Ilustr.: Valeria Docampo
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar o trabalho.
Quem não tem medo da fome tem medo da comida.
Os automobilistas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.
A democracia tem medo de recordar e a linguagem tem medo de dizer.
Os civis têm medo dos militares e os militares têm medo da falta de armas.
As armas têm medo da falta de guerras.
Medo da mulher à violência do homem, medo do homem das mulheres sem medo.
Medo dos ladrões, medo da polícia.
Medo da porta sem fechadura, do tempo sem relógio, das crianças sem televisão.
Medo da noite sem comprimidos para dormir, medo de dia sem comprimidos para acordar.
Medo da multidão, medo da solidão.
Medo do que foi e do que pode ser.
Medo de morrer, medo de viver.

[Eduardo Galeano]

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Sentidos

Ilustr.: Chanelle Kotze




De todos os sentidos, a vista é o mais superficial.
O ouvido, o mais orgulhoso.
O olfato, o mais voluptuoso.
O gosto, o mais inconstante.
E o tato, o mais profundo.

[Diderot]

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Paraíso


E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam; mas este nenhum mal fez.
E disse a Jesus:
Senhor lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
E disse-lhe Jesus:
Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.

[Lucas 23:43]

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Mentiras

Ilustr.: Georgy Kurasov




Há três espécies de mentiras:
as mentiras,
as mentiras sagradas
e as estatísticas.

[Mark Twain]

terça-feira, 31 de março de 2015

Esperança

Ilustr.: Anil Tortop




Esperança...
Para mim, esperança não é só o desejo de que tudo dê certo...
Para mim esperança é uma fonte de motivação,
é um alívio à alma frente ao futuro incerto,
é a gostosa sensação de que tudo pode dar certo...

[Damaris Ester Dalmas]

sexta-feira, 27 de março de 2015

Estado psicológico

Ilustr.: Ronald Companoca
E de chorar, já sou pranto;
de relembrar, esquecido,
nas mãos, palmas calejadas
cavando desejos, proibidos.

E de pensar, já sou louco,
não há encontro para mim,
não tenho nome em tua lista,
não iniciei, sou sem fim.

Com tantos erros passados,
ganhei má fama sozinho,
com tantos passos errados,
não encontrei meu caminho.

Tentei abrir as mãos e não vi nada,
nem mesmo aquele beijo da mulher falada,
nem aquele antigo abraço que ganhei,
eu lutei... perdi! Porque contigo errei.

E de pecados, sou negro,
de relutar, sou sem forças,
de persistir, sou sem vista,
de agredir, comunista!

Não tenho eira nem beira,
não tenho amor para amar,
não posso amar quem não aceita
lutar e ver fracassar.

E vou seguindo sem luzes,
ninguém verá minha partida,
não quero deixar saudades,
nem prantos na despedida.

E se me quer na lembrança,
guarde meu nome contigo
meu nome é nome,
só nome
é simples, mas decisivo.

Na flor das noites de sangue
eu parto sem chorar dor,
eu parto, mas deixo contigo o que fui aqui,
deixo amor.

[Herzer, in 'A Queda para o Alto']

quarta-feira, 25 de março de 2015

Sensação

Ilustr.: Henri Fantin-Latour
1. A base de toda a arte é a sensação.

2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal — o que dá a emoção artística — essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa.

Temos, pois:
(1) A sensação, puramente tal.
(2) A consciência da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho estético.
(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.

3. Ora toda a sensação é complexa, isto é, toda a sensação é composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir. É composta dos seguintes elementos: a) a sensação do objecto sentido; b) a recordação de objectos análogos e outros que inevitável e espontaneamente se juntam a essa sensação; c) a vaga sensação do estado de alma em que tal sensação se sente; d) a sensação primitiva da personalidade da pessoa que sente. A mais simples das sensações inclui, sem que se sinta, estes elementos todos.

4. Mas, quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe. Porque — o que é uma sensação intelectualizada? Uma de três coisas:
a) uma sensação decomposta pela análise instintiva ou dirigida, nos seus elementos componentes;
b) uma sensação a que se acrescenta conscientemente qualquer outro elemento que nela, mesmo indistintamente, não existe;
c) uma sensação que de propósito se falseia para dela tirar um efeito definido, que nela não existe primitivamente.

São estas as três possibilidades da intelectualização da sensação.

[Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação']

terça-feira, 24 de março de 2015

Parabéns

Ilustr.: Robert Armetta


Parabéns para você, que tem um sonho.
Que não desiste, apesar do que falam.
Que não se abala, apesar do medo.
Que sente uma fraqueza interna, mas caminha com passos firmes.
Que fica tonta, mas não desmaia.
Que apesar de cada pedra no caminho, corre.
Que reclama dos problemas, mas entende que a vida é feita deles.
Que tenta entender o defeito alheio – e procura perceber os seus.

[Clarissa Corrêa]


segunda-feira, 23 de março de 2015

Ser sensível

Ilustr.: Kate Rodriguez

Ser sensível neste mundo requer muita coragem.

Este jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda sinceridade. Esta sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Esta intensidade toda em tempo de ternura minguada. Este amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Este cuidado espontâneo com os outros. Esta vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Este melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.

Ser sensível neste mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia.

Esta saudade, que às vezes faz a alma borbulhar, de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Esta possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Esta incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na subtileza. Esta vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo que possa acordar sorrindo. Para toda gente. Para todo ser. Para toda vida.
Eu até já tentei ser diferente, por medo de doer, mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim.

[Ana Jácomo]

domingo, 22 de março de 2015

Alheamento

Ilustr.: Albin Veselka
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...

A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas— de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro vivera...

Quando emergimos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados cheios de tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma palmeira.

Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizar-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...

Zumbe uma mosca, incerta e mínima.. .

[Fernando Pessoa, in 'O Eu profundo e os outros Eus']

sábado, 21 de março de 2015

Dissimulação

Ilustr.: Georgy Kurasov
Dissimula sempre, com extremo cuidado, o estado das tuas forças.

Haverá ocasiões em que te rebaixarás, e outras em que simularás medo. Finge ser fraco a fim de que teus inimigos, abrindo a porta para a presunção e para o orgulho, venham atacar-te em hora errada, ou sejam surpreendidos e derrotados vergonhosamente. Age de tal forma que teus inferiores jamais descubram teus projetos. Mantém as tuas tropas sempre de prontidão, ocupadas e em movimento, para evitar que uma infame ociosidade as quebrante.

Se vês algum interesse em meus planos, cria situações que contribuam para a sua realização. Entendo por "situação" que o general aja eficientemente, em harmonia com o que é vantajoso e, dessa forma, demonstre controle e equilíbrio. 

Toda a campanha militar repousa na dissimulação. Finge desordem.
Jamais deixes de oferecer um engodo ao inimigo, para ludibriá-lo. Simula inferioridade para encorajar a sua arrogância. Atiça a sua raiva para melhor o mergulhar na confusão. Sua cobiça o arremeterá contra ti e, então, ele se estilhaçará.

Apresta os preparativos quando teus adversários se concentrarem.
Quando forem poderosos, evita-os.
Mergulha o adversário em inextricáveis provações e prolonga o seu esgotamento, mantendo-te a distância. Procura fortificar tuas alianças externas e consolidar tuas posições internas.

Quão lamentável é arriscar tudo em um único combate, negligenciando a estratégia vitoriosa, e fazer com que o destino de tuas armas dependa de uma única batalha!
Quando o inimigo estiver unido, divide-o. Ataca-o, quando ele estiver despreparado. Irrompe onde ele menos espera. Tais são as estratégias da vitória. Mas toma cuidado de não te servires delas antes da hora.

O general deve basear-se em avaliações prévias. Elas apontam para a vitória quando demonstram que a sua força é superior à do inimigo. Indicam a derrota quando demonstram inferioridade.
Com numerosos cálculos, pode-se obter a vitória. Teme quando os cálculos forem escassos. E quão poucas chances de vencer tem aquele que nunca calcula!

Graças a esse método, eu, Sun Tzu, avalio a situação e o desfecho se perfilará claramente.

[Sun Tzu, in 'A Arte da Guerra']


sexta-feira, 20 de março de 2015

Rir

Ilustr.: Anil Tortop




Rir de tudo é coisa dos tontos,
mas não rir de nada
é coisa dos estúpidos.

[Erasmo de Rotterdam]

quinta-feira, 19 de março de 2015

Ter um Pai!

Ilustr.: Pablo Picasso
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!

Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;


Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!

Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!

[Florbela Espanca]

quarta-feira, 18 de março de 2015

As mãos de meu pai

Ilustr.: Nicole Roggeman
As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua cadeira predileta, uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste alimentando na terrível solidão do mundo, como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida – que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

[Mario Quintana, in 'Esconderijos do Tempo']


terça-feira, 17 de março de 2015

Degraus do Ser

Ilustr.: Roman Velichko






Porquê prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... A Dor e o Prazer...
Tudo, afinal, são formas e não degraus do Ser!

[Mário Quintana]


segunda-feira, 16 de março de 2015

Retrato

Ilustr.: Albin Veselka
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

[Cecília Meireles]

domingo, 15 de março de 2015

O pastor amoroso perdeu o cajado

Ilustr.: Ronald Companoca

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu... Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
E sentiu que de novo o ar lhe abria,mas com dor, uma liberdade no peito.

[Alberto Caeiro, in 'O Pastor Amoroso']

sábado, 14 de março de 2015

Sinfonia da Noite Inquieta

Ilustr.: John Silver (1959)
Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trémulas nas campinas alagadas, pantanosas, húmidas como o ar antes do sol; as vielas, onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver... Hora de bênçãos tuas mãos subtis... A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro... Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na ideia de tê-las, a maresia, à noite entrada, nos cais da cidade humedecida pelo arrefecer...

Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas... Nomes de rainhas antigas... Vitrais onde pintaram condes fortes... A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável... As mãos secas uma contra a outra.

Os escrúpulos do monge que, no livro antiquíssimo encontra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.

Praia ao sol a febre em mim... O mar luzindo a minha angústia na garganta... As velas ao longe e como andam na minha febre... Na febre as escadas para a praia... Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum — a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas...

Tudo é dos outros, salvo a mágoa de o não ter.
Dá a agulha a mim... Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos — e o não se saber onde ela está metida, ou que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes... Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr da cómoda — supérfluas — e não há o calor de braços sonhados à roda do pescoço da mãe.

[Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego']

sexta-feira, 13 de março de 2015

Bondade

Ilustr.: Geneviève Godbout






A bondade é necessária nos relacionamentos humanos.
Quem não é bom não está a cumprir a sua principal obrigação.

[Leon Tolstoi]

quinta-feira, 12 de março de 2015

Conselhos às Mal-Casadas

Ilustr.: Felice Casorati
Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.

A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.

Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter porém contraído doenças inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos ... — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro; todos os crimes, já se disse, «é nos nossos sonhos que se cometem». Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não nos lembramos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, purpúreos, faustuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido; tinha o ser porque existir é sempre estúpido e banal.

Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de Império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.

Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.

Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.

Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos, se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo, de raio crescente, de machos imaginados.

A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.
Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo, e mudem com a imaginação o homem para olhar o belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.

Como tracasser o marido.
Importa que o marido às vezes se zangue.
O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam, não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe a perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.
A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar-se a gozar com um homem A quando se está copulando com um homem B.

Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias não com o, mas através do, animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo voto e pelo apelido.

É fincando os pés no solo que a ave desprende o voo. Que esta imagem, minhas filhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual.

Ser uma cocote, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar — a volúpia disto, se souberdes consegui-lo.

Ser cocote para dentro, trair o marido para dentro, está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais — oh mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais — a volúpia é isso.

Por que não aconselho eu isto aos homens também? Porque o homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando ... . E o homem superior não tem necessidade de mulher nenhuma. Não precisa de base sexual para a sua volúpia. Ora a mulher, mesmo superior, não aceita isto: a mulher é essencialmente sexual.

[Bernardo Soares, Semi-Heterónimo de Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego']

quarta-feira, 11 de março de 2015

Ser Diferente

Ilustr.: Albin Veselka

A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade;
tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa;
não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores;
ser ele;
não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento;
no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças;
teve a coragem de ser cão entre as ovelhas;
nunca baliu;
e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos.

[Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes']

terça-feira, 10 de março de 2015

Cão gordo

Ilustr.: David Martiashvili






Se recolheres um cão que ande meio morto,
podes engordá-lo e não te morderá.
Essa é a diferença mais notável que existe entre um cão e um homem.

[Mark Twain]

segunda-feira, 9 de março de 2015

Campanha

Ilustr.: Arnold Belkin
[. . .] o tempo e o espaço devem conjugar-se para orientar o movimento e os itinerários das tropas, cujas marchas regularás com precisão.

Jamais comeces ou termines uma campanha fora do momento azado. Conhece o ponto forte e o fraco tanto dos que forem confiados a teus cuidados quanto dos inimigos. Informa-te da quantidade e do estado em que se encontram as munições e os víveres dos dois exércitos. Distribui recompensas com liberalidade, mas com critério. Não poupes castigos, quando necessários.

Conquistados por tuas virtudes e tuas capacidades, os oficiais colocados sob tuas ordens te servirão tanto por prazer quanto por dever. Eles se espelharão em teu exemplo; o exemplo deles servirá para os subordinados, e os soldados rasos, por sua vez, tudo farão para te assegurar o mais glorioso sucesso.

Estimado, respeitado, amado pelos teus, os povos vizinhos virão espontaneamente juntar-se aos estandartes do príncipe que serves, quer para viver sob suas leis, quer simplesmente para obter proteção. Ciente de tuas capacidades e limitações, não inicies nenhuma empreitada que não possas levar a cabo. Decifra, com a mesma argúcia, o longe e o perto, para que o que se desenrola sob teus olhos seja idêntico ao que deles está mais recôndito.

Aproveita a dissensão entre os inimigos para atrair os descontentes para o teu campo, não regateando promessas, oferendas ou recompensas. Se teus inimigos forem mais poderosos e mais fortes, não os ataques. Evita cuidadosamente o que pode redundar num conflito generalizado.

[. . .]

[Sun-Tzu, in 'A Arte da Guerra']

domingo, 8 de março de 2015

Quem?

Ilustr.: Ognian Kouzmanov

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

[Florbela Espanca, in 'A Mensageira das Violetas']

sábado, 7 de março de 2015

Estudos

Ilustr.: Valeria Docampo




Jamais consideres os teus estudos como uma obrigação, mas como uma oportunidade invejável para aprenderes a conhecer a influência libertadora da beleza do reino do espírito, para teu próprio prazer pessoal e para proveito da comunidade à qual o teu futuro trabalho pertencer.

[Albert Einstein]

sexta-feira, 6 de março de 2015

Formar ou informar?

Ilustr.: Ronald Companoca
Estamos a informar e não a formar.
Não estamos a educar a emoção nem a estimular o desenvolvimento das funções mais importantes da inteligência, tais como contemplar o belo, pensar antes de reagir, expor e não impor as ideias, gerir os pensamentos, ter espírito empreendedor. Estamos a informar os jovens, e não a formar a sua personalidade.
Os jovens conhecem cada vez mais o mundo em que estão, mas quase nada sobre o mundo que são. No máximo conhecem a sala de visitas da sua própria personalidade. Quer pior solidão do que esta? O ser humano é um estranho para si mesmo! A educação tornou-se seca, fria e sem tempero emocional. Os jovens raramente sabem pedir perdão, reconhecer os seus limites, colocar-se no lugar dos outros. Qual é o resultado?
Nunca o conhecimento médico e psiquiátrico foi tão grande, e nunca as pessoas tiveram tantos transtornos emocionais e tantas doenças psicossomáticas. A depressão raramente atingia as crianças. Hoje há muitas crianças deprimidas e sem encanto pela vida. Pré-adolescentes e adolescentes desenvolvem obsessões, síndrome do pânico, fobias, timidez, agressividade e outros transtornos de ansiedade.
Milhões de jovens drogam-se. Não compreendem que as drogas podem queimar etapas da vida, levá-los a envelhecer rapidamente na emoção. Os prazeres momentâneos das drogas destroem a galinha dos ovos de ouro da emoção. Conheci e tratei de inúmeros jovens consumidores de drogas, mas não encontrei ninguém feliz.
E o stress? Não apenas é comum detetarmos adultos stressados, mas também jovens e crianças. Eles têm frequentemente dor de cabeça, gastrite, dores musculares, suor excessivo, fadiga constante de fundo emocional.
Precisamos arquivar esta frase e jamais esquecê-la: Quanto pior for a qualidade da educação, mais importante será o papel da psiquiatria neste século. Vamos assistir passivamente à indústria dos antidepressivos e tranquilizantes tornar-se uma das mais poderosas do século XXI? Vamos observar passivamente os nossos filhos serem vítimas do sistema social que criamos? O que fazer diante desta problemática?

[Augusto Cury]

quinta-feira, 5 de março de 2015

Verdade

Ilustr.: Chanelle Kotze



Para maior discernimento, uma pitada de distância e desprendimento.
A verdade é um quebra cabeça com mil bocas e sons. Um tempero de tempo e sentidos sempre atentos.

[Camila Custodio]

quarta-feira, 4 de março de 2015

Pobres homens

Ilustr.: Peter Wever
Os homens choram sentindo no peito total solidão — mas esquecem que estão junto a tantos perdidos, na dor tão confusa desta multidão.
Sacudidos pela impureza e vingança trazem em si a cólera de criança. Crescem tanto, e morrem pequenos, deixando em quem fica os rastros de seus venenos. E nesta doença mundial, não sei se correm dos homens ou então se fogem da fome que dói em todos igual.
Queria que o mundo cedesse e encontrasse no escuro a sua cor natural.
Queria ver total reencontro de branco e negro Deus Santo sob o firme cimento e cal.
E no regresso ao início seria o amor grande vício, seria a perda, busca certa e a covardia de outrora: conhecido alerta.

[Herzer, in 'A Queda para o Alto]

terça-feira, 3 de março de 2015

Adultez

Ilustr.: Albin Veselka





O intervalo de tempo entre a juventude e a velhice é mais breve do que se imagina.
Quem não tem prazer de penetrar no mundo dos idosos não é digno da sua juventude...

[Augusto Cury]

segunda-feira, 2 de março de 2015

Liberdade

Ilustr. from desvandelecturas.tumblr.com
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

[Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro']