quinta-feira, 12 de março de 2015

Conselhos às Mal-Casadas

Ilustr.: Felice Casorati
Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.

A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.

Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter porém contraído doenças inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos ... — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro; todos os crimes, já se disse, «é nos nossos sonhos que se cometem». Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não nos lembramos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, purpúreos, faustuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido; tinha o ser porque existir é sempre estúpido e banal.

Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de Império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.

Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.

Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.

Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos, se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo, de raio crescente, de machos imaginados.

A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.
Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo, e mudem com a imaginação o homem para olhar o belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.

Como tracasser o marido.
Importa que o marido às vezes se zangue.
O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam, não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe a perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.
A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar-se a gozar com um homem A quando se está copulando com um homem B.

Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias não com o, mas através do, animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo voto e pelo apelido.

É fincando os pés no solo que a ave desprende o voo. Que esta imagem, minhas filhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual.

Ser uma cocote, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar — a volúpia disto, se souberdes consegui-lo.

Ser cocote para dentro, trair o marido para dentro, está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais — oh mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais — a volúpia é isso.

Por que não aconselho eu isto aos homens também? Porque o homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando ... . E o homem superior não tem necessidade de mulher nenhuma. Não precisa de base sexual para a sua volúpia. Ora a mulher, mesmo superior, não aceita isto: a mulher é essencialmente sexual.

[Bernardo Soares, Semi-Heterónimo de Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego']

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