terça-feira, 31 de março de 2015

Esperança

Ilustr.: Anil Tortop




Esperança...
Para mim, esperança não é só o desejo de que tudo dê certo...
Para mim esperança é uma fonte de motivação,
é um alívio à alma frente ao futuro incerto,
é a gostosa sensação de que tudo pode dar certo...

[Damaris Ester Dalmas]

sexta-feira, 27 de março de 2015

Estado psicológico

Ilustr.: Ronald Companoca
E de chorar, já sou pranto;
de relembrar, esquecido,
nas mãos, palmas calejadas
cavando desejos, proibidos.

E de pensar, já sou louco,
não há encontro para mim,
não tenho nome em tua lista,
não iniciei, sou sem fim.

Com tantos erros passados,
ganhei má fama sozinho,
com tantos passos errados,
não encontrei meu caminho.

Tentei abrir as mãos e não vi nada,
nem mesmo aquele beijo da mulher falada,
nem aquele antigo abraço que ganhei,
eu lutei... perdi! Porque contigo errei.

E de pecados, sou negro,
de relutar, sou sem forças,
de persistir, sou sem vista,
de agredir, comunista!

Não tenho eira nem beira,
não tenho amor para amar,
não posso amar quem não aceita
lutar e ver fracassar.

E vou seguindo sem luzes,
ninguém verá minha partida,
não quero deixar saudades,
nem prantos na despedida.

E se me quer na lembrança,
guarde meu nome contigo
meu nome é nome,
só nome
é simples, mas decisivo.

Na flor das noites de sangue
eu parto sem chorar dor,
eu parto, mas deixo contigo o que fui aqui,
deixo amor.

[Herzer, in 'A Queda para o Alto']

quarta-feira, 25 de março de 2015

Sensação

Ilustr.: Henri Fantin-Latour
1. A base de toda a arte é a sensação.

2. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal — o que dá a emoção artística — essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa.

Temos, pois:
(1) A sensação, puramente tal.
(2) A consciência da sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um cunho estético.
(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.

3. Ora toda a sensação é complexa, isto é, toda a sensação é composta de mais do que o elemento simples de que parece consistir. É composta dos seguintes elementos: a) a sensação do objecto sentido; b) a recordação de objectos análogos e outros que inevitável e espontaneamente se juntam a essa sensação; c) a vaga sensação do estado de alma em que tal sensação se sente; d) a sensação primitiva da personalidade da pessoa que sente. A mais simples das sensações inclui, sem que se sinta, estes elementos todos.

4. Mas, quando a sensação passa a ser intelectualizada, resulta que se decompõe. Porque — o que é uma sensação intelectualizada? Uma de três coisas:
a) uma sensação decomposta pela análise instintiva ou dirigida, nos seus elementos componentes;
b) uma sensação a que se acrescenta conscientemente qualquer outro elemento que nela, mesmo indistintamente, não existe;
c) uma sensação que de propósito se falseia para dela tirar um efeito definido, que nela não existe primitivamente.

São estas as três possibilidades da intelectualização da sensação.

[Fernando Pessoa, in 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação']

terça-feira, 24 de março de 2015

Parabéns

Ilustr.: Robert Armetta


Parabéns para você, que tem um sonho.
Que não desiste, apesar do que falam.
Que não se abala, apesar do medo.
Que sente uma fraqueza interna, mas caminha com passos firmes.
Que fica tonta, mas não desmaia.
Que apesar de cada pedra no caminho, corre.
Que reclama dos problemas, mas entende que a vida é feita deles.
Que tenta entender o defeito alheio – e procura perceber os seus.

[Clarissa Corrêa]


segunda-feira, 23 de março de 2015

Ser sensível

Ilustr.: Kate Rodriguez

Ser sensível neste mundo requer muita coragem.

Este jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda sinceridade. Esta sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Esta intensidade toda em tempo de ternura minguada. Este amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Este cuidado espontâneo com os outros. Esta vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Este melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.

Ser sensível neste mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia.

Esta saudade, que às vezes faz a alma borbulhar, de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Esta possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Esta incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na subtileza. Esta vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo que possa acordar sorrindo. Para toda gente. Para todo ser. Para toda vida.
Eu até já tentei ser diferente, por medo de doer, mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim.

[Ana Jácomo]

domingo, 22 de março de 2015

Alheamento

Ilustr.: Albin Veselka
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...

A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas— de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro vivera...

Quando emergimos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados cheios de tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma palmeira.

Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizar-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...

Zumbe uma mosca, incerta e mínima.. .

[Fernando Pessoa, in 'O Eu profundo e os outros Eus']

sábado, 21 de março de 2015

Dissimulação

Ilustr.: Georgy Kurasov
Dissimula sempre, com extremo cuidado, o estado das tuas forças.

Haverá ocasiões em que te rebaixarás, e outras em que simularás medo. Finge ser fraco a fim de que teus inimigos, abrindo a porta para a presunção e para o orgulho, venham atacar-te em hora errada, ou sejam surpreendidos e derrotados vergonhosamente. Age de tal forma que teus inferiores jamais descubram teus projetos. Mantém as tuas tropas sempre de prontidão, ocupadas e em movimento, para evitar que uma infame ociosidade as quebrante.

Se vês algum interesse em meus planos, cria situações que contribuam para a sua realização. Entendo por "situação" que o general aja eficientemente, em harmonia com o que é vantajoso e, dessa forma, demonstre controle e equilíbrio. 

Toda a campanha militar repousa na dissimulação. Finge desordem.
Jamais deixes de oferecer um engodo ao inimigo, para ludibriá-lo. Simula inferioridade para encorajar a sua arrogância. Atiça a sua raiva para melhor o mergulhar na confusão. Sua cobiça o arremeterá contra ti e, então, ele se estilhaçará.

Apresta os preparativos quando teus adversários se concentrarem.
Quando forem poderosos, evita-os.
Mergulha o adversário em inextricáveis provações e prolonga o seu esgotamento, mantendo-te a distância. Procura fortificar tuas alianças externas e consolidar tuas posições internas.

Quão lamentável é arriscar tudo em um único combate, negligenciando a estratégia vitoriosa, e fazer com que o destino de tuas armas dependa de uma única batalha!
Quando o inimigo estiver unido, divide-o. Ataca-o, quando ele estiver despreparado. Irrompe onde ele menos espera. Tais são as estratégias da vitória. Mas toma cuidado de não te servires delas antes da hora.

O general deve basear-se em avaliações prévias. Elas apontam para a vitória quando demonstram que a sua força é superior à do inimigo. Indicam a derrota quando demonstram inferioridade.
Com numerosos cálculos, pode-se obter a vitória. Teme quando os cálculos forem escassos. E quão poucas chances de vencer tem aquele que nunca calcula!

Graças a esse método, eu, Sun Tzu, avalio a situação e o desfecho se perfilará claramente.

[Sun Tzu, in 'A Arte da Guerra']


sexta-feira, 20 de março de 2015

Rir

Ilustr.: Anil Tortop




Rir de tudo é coisa dos tontos,
mas não rir de nada
é coisa dos estúpidos.

[Erasmo de Rotterdam]

quinta-feira, 19 de março de 2015

Ter um Pai!

Ilustr.: Pablo Picasso
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!

Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;


Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!

Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!

[Florbela Espanca]

quarta-feira, 18 de março de 2015

As mãos de meu pai

Ilustr.: Nicole Roggeman
As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua cadeira predileta, uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste alimentando na terrível solidão do mundo, como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida – que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

[Mario Quintana, in 'Esconderijos do Tempo']


terça-feira, 17 de março de 2015

Degraus do Ser

Ilustr.: Roman Velichko






Porquê prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... A Dor e o Prazer...
Tudo, afinal, são formas e não degraus do Ser!

[Mário Quintana]


segunda-feira, 16 de março de 2015

Retrato

Ilustr.: Albin Veselka
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

[Cecília Meireles]

domingo, 15 de março de 2015

O pastor amoroso perdeu o cajado

Ilustr.: Ronald Companoca

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu... Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem,
E sentiu que de novo o ar lhe abria,mas com dor, uma liberdade no peito.

[Alberto Caeiro, in 'O Pastor Amoroso']

sábado, 14 de março de 2015

Sinfonia da Noite Inquieta

Ilustr.: John Silver (1959)
Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trémulas nas campinas alagadas, pantanosas, húmidas como o ar antes do sol; as vielas, onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver... Hora de bênçãos tuas mãos subtis... A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro... Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na ideia de tê-las, a maresia, à noite entrada, nos cais da cidade humedecida pelo arrefecer...

Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas... Nomes de rainhas antigas... Vitrais onde pintaram condes fortes... A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável... As mãos secas uma contra a outra.

Os escrúpulos do monge que, no livro antiquíssimo encontra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.

Praia ao sol a febre em mim... O mar luzindo a minha angústia na garganta... As velas ao longe e como andam na minha febre... Na febre as escadas para a praia... Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum — a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas...

Tudo é dos outros, salvo a mágoa de o não ter.
Dá a agulha a mim... Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos — e o não se saber onde ela está metida, ou que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes... Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr da cómoda — supérfluas — e não há o calor de braços sonhados à roda do pescoço da mãe.

[Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego']

sexta-feira, 13 de março de 2015

Bondade

Ilustr.: Geneviève Godbout






A bondade é necessária nos relacionamentos humanos.
Quem não é bom não está a cumprir a sua principal obrigação.

[Leon Tolstoi]

quinta-feira, 12 de março de 2015

Conselhos às Mal-Casadas

Ilustr.: Felice Casorati
Livrai-vos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários. O humanitarismo é uma grosseria. Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.

A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.

Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter porém contraído doenças inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até aos ... — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.

Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro; todos os crimes, já se disse, «é nos nossos sonhos que se cometem». Lembro-me de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não nos lembramos. Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu belíssimos, purpúreos, faustuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a ideia de Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um banal e um estúpido; tinha o ser porque existir é sempre estúpido e banal.

Dou-vos estes conselhos desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa. Pessoalmente, os meus sonhos são de Império e glória; não são sensuais de modo algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar, porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.

Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.

Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.

Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos, se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo, de raio crescente, de machos imaginados.

A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.
Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo, e mudem com a imaginação o homem para olhar o belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.

Como tracasser o marido.
Importa que o marido às vezes se zangue.
O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam, não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe a perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.
A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar-se a gozar com um homem A quando se está copulando com um homem B.

Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias não com o, mas através do, animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo voto e pelo apelido.

É fincando os pés no solo que a ave desprende o voo. Que esta imagem, minhas filhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual.

Ser uma cocote, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar — a volúpia disto, se souberdes consegui-lo.

Ser cocote para dentro, trair o marido para dentro, está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais — oh mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais — a volúpia é isso.

Por que não aconselho eu isto aos homens também? Porque o homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando ... . E o homem superior não tem necessidade de mulher nenhuma. Não precisa de base sexual para a sua volúpia. Ora a mulher, mesmo superior, não aceita isto: a mulher é essencialmente sexual.

[Bernardo Soares, Semi-Heterónimo de Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego']

quarta-feira, 11 de março de 2015

Ser Diferente

Ilustr.: Albin Veselka

A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade;
tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa;
não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores;
ser ele;
não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento;
no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças;
teve a coragem de ser cão entre as ovelhas;
nunca baliu;
e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos.

[Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes']

terça-feira, 10 de março de 2015

Cão gordo

Ilustr.: David Martiashvili






Se recolheres um cão que ande meio morto,
podes engordá-lo e não te morderá.
Essa é a diferença mais notável que existe entre um cão e um homem.

[Mark Twain]

segunda-feira, 9 de março de 2015

Campanha

Ilustr.: Arnold Belkin
[. . .] o tempo e o espaço devem conjugar-se para orientar o movimento e os itinerários das tropas, cujas marchas regularás com precisão.

Jamais comeces ou termines uma campanha fora do momento azado. Conhece o ponto forte e o fraco tanto dos que forem confiados a teus cuidados quanto dos inimigos. Informa-te da quantidade e do estado em que se encontram as munições e os víveres dos dois exércitos. Distribui recompensas com liberalidade, mas com critério. Não poupes castigos, quando necessários.

Conquistados por tuas virtudes e tuas capacidades, os oficiais colocados sob tuas ordens te servirão tanto por prazer quanto por dever. Eles se espelharão em teu exemplo; o exemplo deles servirá para os subordinados, e os soldados rasos, por sua vez, tudo farão para te assegurar o mais glorioso sucesso.

Estimado, respeitado, amado pelos teus, os povos vizinhos virão espontaneamente juntar-se aos estandartes do príncipe que serves, quer para viver sob suas leis, quer simplesmente para obter proteção. Ciente de tuas capacidades e limitações, não inicies nenhuma empreitada que não possas levar a cabo. Decifra, com a mesma argúcia, o longe e o perto, para que o que se desenrola sob teus olhos seja idêntico ao que deles está mais recôndito.

Aproveita a dissensão entre os inimigos para atrair os descontentes para o teu campo, não regateando promessas, oferendas ou recompensas. Se teus inimigos forem mais poderosos e mais fortes, não os ataques. Evita cuidadosamente o que pode redundar num conflito generalizado.

[. . .]

[Sun-Tzu, in 'A Arte da Guerra']

domingo, 8 de março de 2015

Quem?

Ilustr.: Ognian Kouzmanov

Não sei quem és. Já não te vejo bem...
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!...)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?...
- Não sei se tu, amor, assim me vês!...
Nossos olhos não são nossos, talvez...
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...
És quem nem sequer vejo; és um que passa...
És sorriso de Deus que não mereço...

És aquele que vive e que morreu...
És aquele que é quase um outro eu...
És aquele que nem sequer conheço...

[Florbela Espanca, in 'A Mensageira das Violetas']

sábado, 7 de março de 2015

Estudos

Ilustr.: Valeria Docampo




Jamais consideres os teus estudos como uma obrigação, mas como uma oportunidade invejável para aprenderes a conhecer a influência libertadora da beleza do reino do espírito, para teu próprio prazer pessoal e para proveito da comunidade à qual o teu futuro trabalho pertencer.

[Albert Einstein]

sexta-feira, 6 de março de 2015

Formar ou informar?

Ilustr.: Ronald Companoca
Estamos a informar e não a formar.
Não estamos a educar a emoção nem a estimular o desenvolvimento das funções mais importantes da inteligência, tais como contemplar o belo, pensar antes de reagir, expor e não impor as ideias, gerir os pensamentos, ter espírito empreendedor. Estamos a informar os jovens, e não a formar a sua personalidade.
Os jovens conhecem cada vez mais o mundo em que estão, mas quase nada sobre o mundo que são. No máximo conhecem a sala de visitas da sua própria personalidade. Quer pior solidão do que esta? O ser humano é um estranho para si mesmo! A educação tornou-se seca, fria e sem tempero emocional. Os jovens raramente sabem pedir perdão, reconhecer os seus limites, colocar-se no lugar dos outros. Qual é o resultado?
Nunca o conhecimento médico e psiquiátrico foi tão grande, e nunca as pessoas tiveram tantos transtornos emocionais e tantas doenças psicossomáticas. A depressão raramente atingia as crianças. Hoje há muitas crianças deprimidas e sem encanto pela vida. Pré-adolescentes e adolescentes desenvolvem obsessões, síndrome do pânico, fobias, timidez, agressividade e outros transtornos de ansiedade.
Milhões de jovens drogam-se. Não compreendem que as drogas podem queimar etapas da vida, levá-los a envelhecer rapidamente na emoção. Os prazeres momentâneos das drogas destroem a galinha dos ovos de ouro da emoção. Conheci e tratei de inúmeros jovens consumidores de drogas, mas não encontrei ninguém feliz.
E o stress? Não apenas é comum detetarmos adultos stressados, mas também jovens e crianças. Eles têm frequentemente dor de cabeça, gastrite, dores musculares, suor excessivo, fadiga constante de fundo emocional.
Precisamos arquivar esta frase e jamais esquecê-la: Quanto pior for a qualidade da educação, mais importante será o papel da psiquiatria neste século. Vamos assistir passivamente à indústria dos antidepressivos e tranquilizantes tornar-se uma das mais poderosas do século XXI? Vamos observar passivamente os nossos filhos serem vítimas do sistema social que criamos? O que fazer diante desta problemática?

[Augusto Cury]

quinta-feira, 5 de março de 2015

Verdade

Ilustr.: Chanelle Kotze



Para maior discernimento, uma pitada de distância e desprendimento.
A verdade é um quebra cabeça com mil bocas e sons. Um tempero de tempo e sentidos sempre atentos.

[Camila Custodio]

quarta-feira, 4 de março de 2015

Pobres homens

Ilustr.: Peter Wever
Os homens choram sentindo no peito total solidão — mas esquecem que estão junto a tantos perdidos, na dor tão confusa desta multidão.
Sacudidos pela impureza e vingança trazem em si a cólera de criança. Crescem tanto, e morrem pequenos, deixando em quem fica os rastros de seus venenos. E nesta doença mundial, não sei se correm dos homens ou então se fogem da fome que dói em todos igual.
Queria que o mundo cedesse e encontrasse no escuro a sua cor natural.
Queria ver total reencontro de branco e negro Deus Santo sob o firme cimento e cal.
E no regresso ao início seria o amor grande vício, seria a perda, busca certa e a covardia de outrora: conhecido alerta.

[Herzer, in 'A Queda para o Alto]

terça-feira, 3 de março de 2015

Adultez

Ilustr.: Albin Veselka





O intervalo de tempo entre a juventude e a velhice é mais breve do que se imagina.
Quem não tem prazer de penetrar no mundo dos idosos não é digno da sua juventude...

[Augusto Cury]

segunda-feira, 2 de março de 2015

Liberdade

Ilustr. from desvandelecturas.tumblr.com
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

[Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro']

domingo, 1 de março de 2015

Corrente

Ilustr.: Anil Tortop



Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. Alento tenso, que pode virar despedida.
Abraço é confissão. Abraço não pode ser rápido senão é empurrão. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho.
Abraço é para atravessar o nosso corpo.

[Fabrício Carpinejar]