sábado, 7 de dezembro de 2013

Tenho medo

Ilustr.: Margarita Sikorskaia
— De onde tu és? — perguntou Deolinda.
— Sou da Guarda.
Ingénua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa:
— Tu és o meu anjo-da-guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
— Tens medo de fazer amor comigo?
— Tenho — respondeu ele.
— Por eu ser preta?
— Tu não és preta.
— Aqui, sou.
— Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
— Tens medo que eu esteja doente…
— Sei prevenir-me.
— É porquê, então?
— Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda  franziu  o  sobrolho.  Empurrou  o  português  de  encontro  à  parede,  colando-se  a  ele.  Sidónio  não  mais regressaria desse abraço.
— Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro.
E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
— Amar — disse ele — é estar sempre chegando.
Um  ano  depois,  sentado  sobre  um  banco  de  pedra,  o  português  sente  estar  ainda  chegando  a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?

[Mia Couto, in 'Venenos de Deus, Remédios do Diabo', cap. 12]

1 comentário :

  1. Anónimo21:04

    O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
    - Tens medo de fazer amor comigo?
    - Tenho - respondeu ele.
    - Por eu ser preta?
    - Tu não és preta.
    - Aqui, sou.
    - Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
    - Tens medo que eu esteja doente...
    - Sei prevenir-me.
    - É porquê, então?
    - Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
    Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
    - Que olhar é meu nos olhos teus?
    Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros por que o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
    - Amar - disse ele - é estar sempre chegando." Mia Couto

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