terça-feira, 18 de março de 2014

Migalhas


Holding Hands
Não digas nada, dá-me só a mão.
Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega.
Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega.
Quantos são hoje? Nunca sei às que ando, confundo tudo, perco-me sempre, os dias, as horas, às vezes cumprimento pessoas que não conheço, há uma semana ou isso entrei num antiquário, sentei-me a uma mesa D. João V e quando a senhora da loja veio, de uns armários franceses ou lá o que era, pedi-lhe que me servisse um uísque. Uma senhora com mais pulseiras que tu e anéis caros, de maquilhagem a lutar contra a idade e a perder. Ficou a olhar para mim de cara ao lado. Depois perguntou-me se estava bêbedo e depois começou a medir a distância entre ela e a porta a fim de chamar por socorro. Numa das paredes paisagens emolduradas a talha, o retrato de uma viscondessa decotada, estampas de cavalos com legendas em francês. A viscondessa usava um anel no indicador rechonchudo e tinha cara de jantar bicos de rouxinol todos os dias, servindo-se dos talheres como se cada dedo fosse um mindinho desses que a gente enrola para beber o café. A minha irmã, pelo menos, enrola. Eu sou mais para o género de o esticar, tipo antena. Educações.
Tu não enrolas nem esticas, deixas a mão inerte na minha. Não te apetece apertar-ma, não tens vontade de ser terna? Gostava que ma apertasses três vezes, depois eu apertava três vezes, depois tu apertavas quatro vezes, depois eu apertava quatro vezes e ficávamos que tempos assim, num morse de namorados. Fantasias. Desejos. Se calhar sou uma pessoa carente.
Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo. Segundo a minha irmã sou só parvo. A propósito de tudo e de nada – És tão parvo; e eu, mudo, a dar-lhe razão no fundo de mim, lembrando-me que na escola era um castigo com a Geografia, capitais e rios e países tudo misturado. Continuo a misturar. Não me peças, por exemplo, para mostrar a Noruega num mapa. E conheci em rapaz uma norueguesa na praia, a pôr creme nas costas de uma amiga. Passados os primeiros embaraços pôs-me a mim também. Espero que tivesse os mindinhos enrolados. Ofereci-me para lhe pôr a ela. Por gestos fez que não com a cabeça e o brinco esquerdo caiu. Acho que começou a ceder quando o procurámos ambos na areia, uma argola com coisinhas penduradas.
O que me atrai nos brincos não é as mulheres terem-nos na orelha, é o momento em que o prendem, de queixo esticado e olhos vazios. A mesma expressão, aliás, ao procurarem as chaves na carteira. Parece que se ausentam. Depois voltam a estar ali ao rodarem a fechadura.
Esfrego sempre os sapatos no capacho antes de entrar (educações) e avanço devagarinho pelo tapete quase persa fora à medida que lhes percebo uma expressão de
– Como é que me vejo livre deste?
a aumentar, a aumentar. Também é nisso que pensas, responde?
– Como é que me vejo livre deste?
e a tua mão cada vez mais pequena sob a minha, o teu lábio inferior a cobrir o superior ou seja
– Para que me fui meter num sarilho?
as tuas pernas longe, o teu corpo longe, a tua bochecha longe a gritar em silêncio.

[António Lobo Antunes]

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