sábado, 9 de novembro de 2013

Excerto (1)

Ilustr.: Antonio Mingote


Uma vez desperta a minha atenção, não me foi difícil descobrir que tinha inimigos. Na minha profissão, em primeiro lugar, e depois na minha vida social. A uns, tinha prestado serviços. A outros, deveria tê-los prestado. Tudo isso, em suma, estava na ordem das coisas, e descobri-o sem grande mágoa. Em contrapartida, foi-me mais difícil e doloroso admitir que tinha inimigos entre pessoas que mal ou absolutamente nada conhecia. Sempre tinha pensado, com a ingenuidade de que já lhe dei algumas provas, que os que não me conheciam não poderiam deixar de gostar de mim, se chegassem a privar comigo. Pois bem, nada disso! Encontrei inimizades sobretudo entre os que não me conheciam senão muito por alto, e sem que eu próprio os conhecesse. Suspeitavam, sem dúvida, de que eu vivia em plenitude e num livre abandono à felicidade: isso não se perdoa. O ar do êxito, ostentado de uma certa maneira, é capaz de pegar raiva a um asno.

[Albert Camus, in 'A Queda'
Sinopse de Paulo Neves da Silva]

1 comentário :

  1. Anónimo11:57

    "(...) Mas, para se ser feliz é preciso não nos ocuparmos muito dos outros. As saídas ficam, pois, cortadas. Feliz e julgado ou absolvido, e miserável. Quanto a mim, a injustiça era maior: eu era condenado por causa de felicidades antigas. (...)"
    ... Cem anos após o seu nascimento, 53 depois da sua morte, vivemos o que tão bem escreveu - a desilusão ou pouca fé na humanidade, onde, afinal, pertencemos e da qual somos ou deveriamos sentir responsáveis. O envolvimento, co-responsabilidade, respeito, ..., em suma, amor pelo outro, é tesouro perdido.

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