domingo, 10 de novembro de 2013

Excerto (2)


Ilustr.: Antonio Mingote
A minha vida, por outro lado, estava cheia a transbordar, e, por falta de tempo, eu recusava muitas oportunidades! Esquecia em seguida, pela mesma razão, as minhas recusas. Mas tais oportunidades tinham-me sido oferecidas por pessoas cuja vida não era plena, e que, por esta mesma razão, se lembravam das minhas recusas.
Era assim que, para dar apenas um exemplo, as mulheres, no fim de contas, me ficavam caras. O tempo que lhes consagrava, não o podia dedicar aos homens, que nem sempre me perdoavam. Como sair disto? Não nos perdoam a nossa felicidade, nem os nossos êxitos, senão no caso de consentirmos generosamente em reparti-los. Mas, para se ser feliz é preciso não nos ocuparmos muito dos outros. As saídas ficam, pois, cortadas. Feliz e julgado ou absolvido, e miserável. Quanto a mim, a injustiça era maior: eu era condenado por causa de felicidades antigas. Tinha vivido durante muito tempo na ilusão de um acordo geral, quando de todos os lados choviam sobre mim, distraído e sorridente, os juízos, as flechas e os remoques. A partir do dia em que fiquei alerta, veio-me a lucidez, recebi todos os ferimentos ao mesmo tempo e perdi de uma só vez as minhas forças. O universo inteiro pôs-se então a rir à minha volta.

[Albert Camus, in 'A Queda'
Sinopse de Paulo Neves da Silva]

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