terça-feira, 28 de outubro de 2014

Porque me apetece (2)

Ilustr.: Dorina Costras
Não foram, não são, talvez nunca venham a ser, um casal como os outros, não acreditam em viver juntos, não acreditam em casamento, não acreditam sequer em filhos ou em família. Provavelmente até nem um casal são, se quisermos ser rigorosos. Acreditam no instante do amor, como decidiram chamar-lhe. Amam-se como se amassem a vida, consomem-se desesperadamente, inventam novos pedaços de pele para provar. Depois, vai cada um para a sua casa e dedicam-se a amar-se sem que os corpos tenham qualquer relação com isso.

- Não sei se amo mais a tua pele ou a memória dela.

Acreditavam sobretudo numa máxima que haviam criado a meias, segundo a qual não poderiam deixar nenhuma felicidade por tentar. Era por isso que, embora nenhum dos dois o tenha feito alguma vez, permitiam que o outro fosse livre para fazer o que bem entendesse com quem entendesse.

- Há que tentar o que nos apetecer.

Nesta noite, em que se festejava a passagem de mais um dia, voltaram ao ritual de sempre. Ela apertou-o, pediu-lhe para nunca mais ele a largar, ele apertou-a e pediu-lhe para nunca mais ela o largar, ficaram assim alguns minutos, foram mudando de posição enquanto se apertavam, até que ela lhe pediu para nunca mais ele a largar e largou-o, e depois ele pediu para nunca mais ela o largar e largou-a. Foram, a pé, silenciosos, para a rua, onde cada um seguiu o seu caminho e onde, separados, sentiram que a verdadeira ligação era a deles, a que lhes permitia guardar do que se ama apenas a melhor memória, apenas o melhor instante. Sentiram-se, então, plenamente consumados.

- Por favor ama-me com defeitos.

Ou não. Ou então não foi nada assim. Ou então ela percebeu que o que amavam era um espécie de amor, e ela não gostava de espécies de coisa nenhuma.

- Ou gero uma espécie ou sou uma espécie de pessoa.

E ele recebeu-a no seu apartamento ao qual ela nunca tinha ido porque tinham resolvido encontrar-se sempre em território neutro (para quê trazermos um espaço ocupado a algo que vamos ocupar por inteiro?), e ela disse-lhe “quero-te mesmo que sejas fraco, mesmo que tenhas problemas, mesmo que por vezes me irrites ou me magoes, mesmo que tenhamos de sofrer como cães para nos mantermos juntos”, e ele abriu-lhe os braços, disse-lhe “nunca esperei que me quisesses como te quero, sinto-te a falta desde que te tenho, as memórias são tão boas mas para dizer a verdade prefiro o original à imitação”.

[Pedro Chagas Freitas]

Sem comentários :

Enviar um comentário